terça-feira, 6 de setembro de 2011

CULTURA E POLÍTICA


Crónica de Pedro Tadeu no “Diário de Notícias” de hoje:

“Ao longo da vida, aprendi várias coisas com a Festa do Avante!, onde este fim-de-semana não fui. Comecei, na adolescência, por sentir como é emocionante ouvir música amplificada em milhares de watts eléctricos soprados ao ar livre, coisa então rara de se ouvir em Portugal. Descobri que havia muitas músicas, de muitas partes do mundo, a soar tão ou mais excitantes do que o rock que tocava no meu gira-discos. Entendi, assim, como era diverso o planeta.
Vi divertirem-se, juntos, velhos e novos, pais e filhos. Olhei, pela primeira vez, com atenção, para uma exposição de pintura. Bebi, desconfiado, um cocktail taino. Provei sopa de cação. Namorei deitado na relva. Foi ali que um tipo, que não conhecia e me chamava camarada, me convenceu a cortar o cabelo à escovinha na véspera de eu ir para a tropa.
Trabalhei alguns meses no gabinete de projecto da Festa do Avante!, comandado pelo engenheiro e recordista da resistência à tortura do sono, Fernando Vicente, e pelo grande artista plástico Rogério Ribeiro. Ali imaginei o que seria ser Deus antes do Génesis e soube como o desenho numa planta de arquitecto se transforma num painel, numa canalização, numa rede eléctrica, num balneário, num camarim, num jogo de bandeiras decorativas, numa exposição, num palco, numa tasquinha, num pequeno mundo complexo, num ecossistema de três dias preparado para receber meio milhão de pessoas.
E, depois, calhou trabalhar com Ruben de Carvalho, o homem mais impressionante que já conheci, pensador e produtor por 35 vezes do programa cultural deste festival, um recorde do mundo. Com ele aprendi ser sempre mais difícil decidir quem actua a meio da tarde do que escolher quem encerra a noite. Vi como era preciso ter coragem para dizer não a músicos ligados ao PCP, que caíam na tentação de querer transformar a festa de todos numa coutada exclusiva.
Aprendi como se fabricam as grandes ideias e as dezenas de horas de discussão redonda, esgotantes, que é preciso ter para lá chegar. Vi como surgiram os filões das músicas brasileiras, folk ou africana, sempre um pouco à frente das modas em que elas depois se transformaram, e registei como aconteceu a que agora é marca definitiva do evento: o grande concerto de música clássica.
Na Festa do Avante! ensinaram-me, como a muitos outros, o essencial do que me transformou num profissional bem-sucedido: é preciso entender o quadro geral de um problema e dar importância aos detalhes que fazem a diferença.
Ali aprendi, portanto, que a cultura, afinal, é mais importante do que a política... Não é, Ruben?”

Legenda: José Saramago durante os preparativos da 1ª Festa do Avante na FIL, Setembro 1976. Fotografia  tirada do catálogo  “José Saramago: A Consistência dos Sonhos” de Fernando Gómez Aguilera

5 comentários:

Miguel disse...

Pena que, pelos vistos, se tenha esgotado o "filão" da Folk Music...

Sammy, o paquete disse...

Não foi o "filão" da folk music que se esgotou, sem nomes sonantes, é certo, a folk tem continuado a marcar presença na Festa.
Mas a globalização, a quantidade de eventos que agora se realizam por esse mundo, a crise financeira e - hélas! - uma quebrazinha na militância, faz com que os grandes nomes da folk não surjam no cartz.

Jack Kerouac disse...

Pois, se há quem falte à Festa! por causa de umas mariquices quaisquer...para que queriam lá a Folk ?

Miguel disse...

Boa Jack...!

Essa é mesmo de Camarada Controleiro!

Um abraço!

Miguel disse...

Pois, Caro Jack, fui interrompido e tive de te abreviar a resposta...

Não posso responder pelas mariquices dos outros, mas a minha ficou a dever-se a um terrível desarranjo intestinal que me afectou durante uma semana inteira.

E se me abstive foi, em boa parte, pelo bom nome dos meus Amigos e por grande respeito pela Festa.

Imagina que encontrávamos o Camarada Jerónimo de Sousa, como no ano passado...

Imagina que desfilávamos lado a lado, e de cada vez que ele levantava o punho e gritava "OS RICOS QUE PAGUEM A CRISE!!!" a militância dos meus intestinos se manifestava de forma ruidosa...

Eu sei que há foguetes, fogo de artifício, cantoras de ópera na redondeza, mas tu não conheces a consciência de classe e a militância dos meus intestinos.

Mesmo que tivesse conseguido passar despercebido sem que os capangas pegassem em mim e me deitassem à água por suspeita de tentar matar a tiro o Secretário-Geral, o ruído, em mim, não é tudo...

A Cristina costuma dizer que, em termos de destruição, é algo semelhante a Hiroshima e Nagasaki juntas...

Imagina o efeito no pobre Jerónimo de Sousa, Paulo!

E como é que achas que iria reagir toda aquela multidão se soubesse que o seu Secretário-Geral se encontrava prostrado, estendido na relva...?

Imaginas o pânico...?

E não teria a queda do Secretário-Geral um efeito simbólico de incapacidade e impotência na luta contra o poder instituido, algo que jamais poderiamos admitir que se instalasse no espírito dos Militantes e Amigos numa concentração daquela dimemsão e natureza...

Quedei-me, assim, pelo Bairro da Bica. Matei todos os pombos da vizinhança, esses sacaninhas que me cagam o carro todas as manhãs.

Mas garanti a salubridade da Festa, a sobrevivência do Camarada Secretário-Geral e a continuidade da Luta. Achas que é pouco, para um gajo como eu que nem sequer grande simpatizante é, quanto mais militante...

Um abraço!