segunda-feira, 26 de setembro de 2011

SARAMAGUEANDO


José Saramago na conversa que manteve com João Céu Silva, disse:

“Não sei o que poderá acontecer amanhã mas não me vejo a voltar a escrever poesia. A minha poesia é uma poesia de segunda ou terceira classe não vale a pena teimar. Não tive ilusões, é o que é, limpa, honesta e em algum momento terá sido algo mais do que isso mas, enfim, não vou ficar na história como poeta. Suponho que se ficar na história será como um romancista que também fez alguns versos”

João Céu e Silva, a propósito desta afirmação de José Saramago, cita uma entrevista publicada em “O Tempo” de 7 de Dezembro de 1984:

“Não acho realmente, que seja um bom poeta. E talvez tenha sido a consciência desse facto que me fez, a partir de certa altura, abandonar de facto a poesia. Ou melhor: talvez não tenha abandonado de facto a poesia. O que abandonei foi a actividade de fazer versos. E não penso voltar. Pela maior liberdade que a prosa me concede, pela maior possibilidade de prolongar a o próprio discurso, talvez haja muito mais poesia num romance meu do que toda aquela que eu seria capaz de inserir num livro de poemas.”

São três os livros de poesia que José Saramago nos deixou:

“Os Poemas Possíveis”, Provavelmente Alegria”, publicados, respectivamente em  1966 e 1970, e “O Ano de 1993”, publicado em 1975.
Até à sua 2ª edição, em 1987, com ilustrações de Graça Morais. este livro passou, um tanto ou quanto, despercebido.

Trata-se de uma ficção poética iniciada no dia 16 de Março de 1974 ,  quando fracassou o golpe militar das Caldas da Rainha, um mês e alguns dias antes do 25 de Abril, um dia em que nos sentimos mais mergulhados nas trevas de então, um esvoaçar de esperança que durou escassas horas, uma desilusão.

Todas as calamidades haviam caído sobre a tribo ao ponto de se falar na morte com esperança

Um pouco mais e o suicídio colectivo seria votado e decidido

Assim pela infinita planície as vozes inseguras se iam aos poucos calando como se a próxima paragem fosse a última e o soubessem” ( início do capítulo 20).

José Saramago sempre incluiu esta narrativa apocalíptica, há quem lhe chame fábula, sem virgulas, sem pontos finais, apenas capítulos, como sendo um livro de  “poesia”.

Este é o capítulo 30, o final:

Uma vez mais os lugares conhecidos os lugares de solidão e de morte os centímetros quadrados de tortura as cores do sangue até à sua final cor de terra

 Uma vez mais o infinito combate as batalhas aquelas que se ganharam e essas outras humildes perdidas e de que não se quer falar

 Uma vez mais os suspiros sobretudo os últimos e os primeiros e os que estão entre uns e outros uma vez mais o braço sobre o ombro e o corpo sobre o corpo

 Uma vez mais tudo o que uma vez foi ou muitas as pegadas de hoje na marca dos pés antigos uma vez mais a mão no gesto começado e interrompido e assim sucessivamente

 Uma vez mais a ida e o regresso e agora a esperada fadiga entre duas altas montanhas num chão de pedra onde a sempre de repente fica enquanto o corpo se dissolve no ar

 Assim o olhar apartado a própria sombra com olhos invisíveis e sorrir disso enquanto as pessoas perplexas procuram onde nada está

 E uma criança objectiva se aproxima e estende as mãos para a sombra que fragilmente retém o contorno ainda mas não já o cheiro do corpo sumido

 Uma vez mais enfim o mundo o mundo algumas coisas feitas contadas tantas não e sabê-lo

 Uma vez mais o impossível ficar ou a simples memória de ter sido

 Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele esfolada

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