José Saramago em “O Caderno” Vol. I:
Ibañez, claro. A esta voz reconhecê-la-ia em qualquer circunstância e em qualquer lugar onde me afagasse os ouvidos. A esta voz conheço-a desde que, no princípio dos anos 70, um amigo me enviou de Paris um disco seu, um vinilo que o tempo e o progresso tecnológico puseram materialmente fora de moda, mas que guardo como um tesouro sem preço. Não exagero, para mim, naqueles anos ainda de opressão em Portugal, esse disco que me pareceu mágico, quase transcendente, trouxe-me o resplendor sonoro da melhor poesia espanhola e a voz (essa inconfundível voz de Paco) o veículo perfeito, o veículo por excelência da mais profunda fraternidade humana. Hoje, quando trabalhava na biblioteca, Pilar pôs-nos a ouvir a última gravação dos poetas andaluzes. Interrompi o que estava a escrever e entreguei-me ao prazer do momento e à recordação daquele inesquecível descobrimento. Com a idade (que alguma coisa há-de ter, e tem, de bom) a voz de Paco tem vindo a ganhar um aveludado particular, capacidades expressivas novas e uma calidez que chega ao coração. Amanhã, sábado, Paco Ibañez cantará em Argelès-sur-mer, na costa da Provença, em homenagem à memória dos republicanos espanhóis, entre eles seu pai, que ali sofreram tormentos, humilhações, maus tratos de todo o tipo, no campo de concentração montado pelas autoridades francesas. A douce France foi para eles tão amarga quanto o seria o pior dos inimigos. Que a voz de Paco possa pacificar o eco daqueles sofrimentos, que seja capaz de abrir caminhos de fraternidade autêntica no espírito daqueles que o escutem. Bem o necessitamos todos.
Sem comentários:
Enviar um comentário