Confesso Que Vivi
Pablo Neruda
Tradução: Arsénio Mota
Capa: Estúdios P.E.A.
Publicações Europa-América
Lisboa, Abril 1975
O meu povo foi o mais atraiçoado deste tempo. Dos desertos do nitrato, das minas submarinas do carvão, das altitudes terríveis onde jaz o cobre e o extraem com esforços sobre-humanos as mãos do meu povo, surgiu um movimento libertador de dimensão grandiosa. Esse movimento levou à presidência do Chile um homem chamado Salvador Allende, para introduzir reformas e medidas de justiça inadiáveis, a fim de resgatar as nossas riquezas nacionais das garras estrangeiras. (…).
Aqui, no Chile, estava a construir-se, entre enormes dificuldades, uma sociedade verdadeiramente justa, bem assente na base da nossa soberania, do nosso orgulho nacional, do heroísmo dos melhores habitantes do Chile. Do nosso lado, do lado da
revolução chilena, estavam a Constituição e a lei, a democracia e a esperança.
Do outro lado não faltava nada. Tinham arlequins e polichinelos, palhaços a granel. Terroristas de pistola e algemas, monges falsos e militares degradados. Uns e outros davam voltas no carrossel do despeito. O fascista Jarpa andava de mãos dadas com os seus sobrinhos de «Pátria e Liberdade», dispostos a partir a cabeça e a alma a tudo quanto existe, contanto que recuperassem a quinta
que eles intitulam o Chile. Junto com eles, para amenizar a farândola, dançava um grande banqueiro e bailarino, já
manchado de sangue - o campeão de rumba González Videla, que, sempre rumbando, entregou há tempo o seu partido aos inimigos do povo. (…)
O Chile tem uma longa história civil, com poucas revoluções e muitos governos estáveis, conservadores e medíocres.
Muitos presidentes sem envergadura e só dois grandes presidentes: Balmaceda e Allende. É curioso que os dois proviessem do mesmo meio, da burguesia endinheirada, que aqui se faz chamar aristocracia. Como homens de princípios, empenhados em engrandecer um país enfraquecido pela oligarquia medíocre, foram ambos conduzidos à morte da mesma maneira. Balmaceda foi até ao suicídio porque resistiu a entregar a riqueza mineira dos nitratos às companhias estrangeiras.
Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Nos dois casos, a oligarquia chilena organizou revoluções sangrentas. Nos dois casos, os militares portaram-se como uma matilha de cães. As companhias inglesas no tempo de Balmaceda, as norte-americanas no tempo de Allende, fomentaram e apoiaram esses movimentos militares. (…)
As obras e os feitos de Allende, de inesquecível valor nacional, enfureceram os inimigos da nossa libertação. O simbolismo trágico desta crise revela-se no bombardeamento do palácio do Governo. Lembra a Blitz-krieg da aviação nazi contra indefesas cidades estrangeiras - espanholas, inglesas, russas. Agora, cometeu-se o mesmo crime no Chile.
Pilotos chilenos atacaram em voo picado o palácio que durante dois séculos tinha sido o centro da vida civil do país.
Escrevo estas rápidas linhas para as minhas memórias apenas três dias passados sobre os factos inqualificáveis que levaram à morte o meu grande camarada: o presidente Allende. O seu assassinato foi mantido em silêncio. Foi sepultado secretamente. Só a sua viúva teve licença para acompanhar aquele cadáver imortal. A versão dos agressores é que encontraram o seu corpo inerte, com sinais evidentes de suicídio. A versão publicada no estrangeiro é diferente.
Após a acção de bombardeamento aéreo, entraram em acção os tanques, muitos tanques, lutando intrepidamente contra
um único homem: o presidente da República do Chile, Salvador Allende, que os aguardava no seu gabinete, sem outra companhia além de um grande coração, envolto em fumo e chamas.
Havia que aproveitar tão bela ocasião. Era preciso metralhá-lo - porque ele jamais renunciaria ao cargo. Aquele corpo foi enterrado secretamente num sítio qualquer. Aquele cadáver que foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher, que carregava consigo toda a dor do mundo, aquela gloriosa figura morta, ia crivada e despedaçada pelas balas das metralhadoras dos soldados do Chile, que mais uma vez tinham atraiçoado o Chile.
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