“As ruas, as escadas, os becos, de Valparaíso, ainda que esconsos, sombrios, irregulares, íngremes, velhos, decadentes, piscam o olho, sussurram ao ouvido, abrem-se num sorriso, acolhem no cálido regaço todos os que ousam. As pequenas mercearias, oferecendo invariavelmente empanadas de “qualquer coisa”, intercalam-se com tentadoras geladarias, cheirosas padarias e pastelarias, aromáticos restaurantes, tascas e vendedores de rua; mas também com coloridos ateliers de artesanato, de moda, de pintores ou fotógrafos; e com “performers” diversos, oferecendo a singularidade da criatividade de cada um, desde marionetas bailarinas, teatro, declamação, caricatura, e música, claro está.
E às cores, aos sabores e aromas que brotam do interior do “café com letras”, sentando-se na explanada, frente a frente com Pablo Neruda, estático e sério, no belíssimo mural dourado pelo cálido entardecer, juntam-se os sons fortes e calorosos que brotam da vizinha “biblioteca popular” Salvador Allende!
Talvez o “companheiro Yuri” seja apenas um bluff que caiu no goto naiff do viajante acidental. Talvez o “companheiro Yuri” seja um fóssil anquilosado, que vive fora do tempo e, ao acordar ou deitar, em vez de rezar um pai-nosso, cante a internacional e leia um trecho dos discursos de Salvador Allende. Talvez o “companheiro Yuri” se tenha evadido de um qualquer reformatório, ou tenha mesmo sido “convidado” a fazê-lo, antes que “reformados” e “reformadores” perdessem as certezas e trocassem as cadeiras. Talvez o “companheiro Yuri” seja apenas um homem que recusa ser um homem apenas. Mas o “companheiro Yuri”, depois de ter visto a municipalidade recusar-lhe autorização para abrir as portas da “biblioteca popular Salvador Allende” à cidade, na forma de uma carrinha forrada e recheada de livros – politicamente incorrectos, já se vê – começou por abrir o corredor, depois a sala, depois o quarto, depois a casa toda – mudando a casa para as traseiras – aos livros, à música e aos companheiros, que é o nome de todos, das portas para dentro.
Na Avenida Almirante Montt, soa firme a voz forte, enérgica, quase ameaçadora, de Salvador Allende. O discurso fala de justiça, fala igualdade, fala de progresso, fala de patriotismo, fala de socialismo, fala de repartição. Naquela voz, a mesma que disse “ser jovem e não ser revolucionário é mesmo uma contradição biológica”, as palavras não parecem brotar do homem, mas através do homem. Parecem verdades universais que brotam da natureza e se espalham pelos elementos, queimando o coração dos homens que ousam sonhar. Em cada frase, parece haver um compromisso de sangue. Em cada frase parece haver um punhal erguido. Cada frase parece encerrar a verdade das coisas eternamente absolutas. Para o bem ou para o mal, mas se a cantiga é uma arma, aquela voz, naquela convicção e energia, seria uma arma de construção massiva, que só a morte pode destruir.
Na Avenida Almirante Montt, a porta e janelas da “biblioteca popular Salvador Allende” estão abertas e do seu interior solta-se a voz tonitruante de Allende, em fortes tons de vermelho: os livros que se estendem pelas mesas, ou se amontoam junto às paredes; as faixas e estandartes das paredes; os retratos de Che, Jara, da bandeira do Chile. Mas principalmente o ar que se respira… é que na “biblioteca popular Salvador Allende”, o ar é mais denso que lá fora.”
Texto e imagens de Idílio Freire
1 comentário:
Parabéns pelo blogue!
Revela-se cada vez mais instigante!
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