A aldeia, encostada à Ria de Aveiro, tem uma boa
mancheia de habitantes dependendo da terra ou das fábricas próximas, meia dúzia
de cafés vulgares, uma estação dos Correios, uma cabine telefónica, uma agência
bancária, dois carros de praça e um largo ajardinado com um quiosque e uma
estátua. Já houve calafates, hoje resta um em actividade; o próprio sindicato
da classe fechou. Às três da tarde de todos os Verões os senhores cansados
dormem a sesta.
A estátua deveria simbolizar o Emigrante mas falhou
miseravelmente porque se parece com a deum poeta que lá mais para o Norte
noutro quadrado do mapa. Como se não bastasse esse desaforo a Junta de
freguesia lembrou-se de embelezar o pedestal com uns versos tão cruéis que
talvez só o autor os siaba de memória. A melhor estatuária local são ios bustos
de Simón Bolivar espalhados pelos quaintais dos «venezuelanos», há um que brinda
mesmo ao «libertador da Pátria».
Sempre que regresso numa data qualquer do mês de Agosto,
o meu primeiro cuidado é arrumar os livros no escritório do falecido senhor meu
sogro, ir ao bazar por papel e canetas de feltro, e esperar a manhã inaugural
das férias com uma impaciência feita de sobressaltos e alta voltagem arterial.
Na manhã seguinte eles lá estão, os melros, aquecendo a gorja para me saudarem.
Primos irmãos, não escondem o afecto nem eu lhes perdoaria tal. Houve um que
vinha cantar-me no rebordo do grande alpendre, fiado no professor francês: «E
para começar, música!»
Se era lição aprendi-a porém mal, pois cada vez mais a
dissonância vem tomando conta da minha poesia, ao ponto de poder ser confundida
com prosa baça. Pouca vigilância, talento disperso: uma explica o outro, e vão
vividos os anos suficientes para eu não mudar um mícron que seja. Agora espero
a velhice e dentro dela a morte surda.
Um cão reconhece sempre outro cão. Vêem-se,
cheiram-se ou ouvem-se, mas nunca se tomam por outra coisa, a não ser por cães.
Podem ser de qualquer, feitio ou cor, mas para um cão, um cão é um cão.
Uma
noite, na Brasileira do Chiado, meados dos anos 60, eu e o Zé Ferraz, mesas
cheias de intelectuais, outras gentes, também pides, e o Armindo a entrar porta dentro, com a sua pasta de cabedal
preto, que colocava ao seu lado como se fosse um cão.
Bica escaldada pedida,
começou a tirar da pasta uma série de folhas A4, que eram poemas de Walt
Whitman que ele acabara de traduzir.
O
Armindo deu a cada um de nós, cópias dessas traduções que ele tivera o cuidado de
passar a papel químico. Longe estava o mundo das fotocópias.
Foi
assim que conheci Walt Whitman.
Digo
com mágoa: não sei que descaminhos levaram essas traduções, excelentes
traduções.
Armindo,
um jovem cheio de talento que um dia, para fugir à guerra colonial se exilou em
Paris, e de quem não mais tive notícias.
O Zé
Ferraz também seguiu os mesmos passos, e também o silêncio.
Walt Whitman, autodidacta, aprendiz de tipografia, jornalista, enfermeiro na
Guerra da Secessão confortando soldados, escrevendo-lhes cartas para os familiares,
lendo-lhes poemas. Assumindo a sua homossexualidade, em tempos tão difíceis
para esses sentimentos, teve de enfrentar os mais diversos ódios e
incompreensões.
Como os
de um crítico de um jornal de Boston em 1855:
O autor devia ser corrido a pontapés de
qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas.
Não há inteligência nem método nesta tagarelice desarticulada e cremos que deve
tratar-se de um pobre louco fugido do manicómio em pleno delírio.
Ou os
de um crítico londrino:
Mas que direito tem este Walt Whitman de ser
considerado um poeta? A sua familiaridade com a arte é tão escassa como a de um
porco com a matemática.
Mas o seu pensamento, livre e corajoso, tudo
varreu.
Fernando
Pessoa, via Álvaro de Campos, em Junho de 1915, envia-lhe uma saudação de que se
reproduz um extracto:
Portugal-Infinito, onze de Junho de mil
novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu
cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em
Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos
concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a
diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores,
pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das
meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro
aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros
saudando Deus!
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo
em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos
os propósitos
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de
produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a
vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Electricidade
futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os objectos de
fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares,
paneleiro de Deus!
Eu, de monóculo e casaco exageradamente
cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o
não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente
cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e
amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano
em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste,
e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e
me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn
Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo
que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá
estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando
o universo na alma.
Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é
Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus
beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e
agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado
no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da
minha alma.
Federico
Garcia Lorca, em 1930, escreve-lhe uma ode, musicada há uns anos por Patxi
Andion e que está incluída no álbum Poetas en Nueva York, um trabalho,
publicado em 1986, por ocasião dos 50 anos do assassinato, pelo franquismo, deFederico
Garcia Lorca:
Ni un solo momento, Viejo hermoso Walt
Whutman,
he dejado de ver tu barba llena de mariposas,
ni tus hombros de pana gastados peor la luna,
ni tus muslos de Apolo virginal,
ni tu voz como una columna de ceniza.
Também
Pablo Neruda:
Eu não me lembro
com que idade,
nem onde,
se no grande Sul molhado
ou na costa
temível, sob o breve
grito das gaivotas,
toquei certa mão e era
a mão de Walt Whitman:
pisei a terra
com os pés descalços,
andei sobre o pasto,
sobre o firme orvalho
de Walt Whitman.
Yeats, Ezra Pound, Allen Ginsberg, também saudaram
Walt Whitman.
E ainda
há Robin Williams, em O Clube dos Poetas Mortos, a recitar Oh
capitain, my capitain!
Quando soube ao fim do dia que o meu nome fora aplaudido no capitólio, mesmo
assim nessa noite não fui feliz,
E quando me embriaguei ou quando se realizaram os meus planos, nem assim fui
feliz,
Porém, no dia em que me levantei cedo, de perfeita saúde, repousado, cantando e
aspirando o ar fresco de outono,
Quando, a oeste, vi a lua cheia empalidecer e perder-se na luz da manhã,
Quando, só, errei pela praia e nu mergulhei no mar e, rindo ao sentir as águas
frias, vi o sol subir,
E quando pensei que o meu querido amigo, meu amante, já vinha a caminho, então
fui feliz,
Então era mais leve o ar que respirava, melhor o que comia, e esse belo dia
acabou bem,
E o dia seguinte chegou com a mesma alegria e depois, no outro, ao entardecer,
veio o meu amigo,
E nessa noite, quando tudo estava em silêncio, ouvi as águas invadindo
lentamente a praia,
Ouvi o murmúrio das ondas e da areia como se quisessem felicitar-me,
Porque aquele a quem mais amo dormia a meu lado sob a mesma manta na noite
fresca,
Na quietude daquela lua de outono o seu rosto inclinava-se para mim,
E o seu braço repousava levemente sobre o meu peito – nessa noite fui feliz.
Naquele
tempo tudo era festa. Bastava sair de casa e atravessar a estrada para ficarem
como loucas; e era tudo tão belo, especialmente de noite quando, ao regressarem
mortas de cansaço, esperavam ainda que qualquer coisa acontecesse, que um
incêndio estalasse, uma criança nascesse em casa ou até que subitamente viesse
a manhã e toda a gente saísse para a rua e pudessem continuar a caminhar,
caminhar até aos prados e para lá das colinas.
Nunca dancei. Vi os outros
dançarem, em terraços voltados para o mar, no chão de areia de África ou do
Brasil, em clandestinos infernos de bares de marinheiros ou em inflamadas
discotecas de praia turísticas, vi-os e julguei-os felizes, esquecidos e
voláteis, perdidos e enovelados numa bola de fogo, mesmo se às vezes os pares
se rompiam e ela vinha sentar-se a chorar, e então eu pensava que ainda havia
palavras que podiam funcionar como carícias, que eu sabia dizê-las, palavras
redondas, encostadas à face magoada e triste. Também dancei sem que os outros
soubessem que eu dançava, mas dancei fora da dança, porque dançava para mostrar
que também dançava, e lembrava-me disso em cada passo, e nunca esquecia que era
o meu próprio corpo que dançava, e nunca soube dançar sobre o esquecimento do
corpo, nunca ninguém dançou sobre o meu corpo como se fosse a areia da praia ou
um terraço voltado para o mar, nunca ninguém que eu sentisse os dois esquecidos
de mim.
Pouco a pouco, aprendi a olhar
a arte da dança, e passei noites inteiras no deslumbramento de os ver, sem
palavras úteis que me explicassem o que ali se passava à minha frente. Era
apenas ficar sentado com os olhos colados ao vidro de um mundo outro em que os
corpos se multiplicavam como estrelas no momento preciso em que ainda não se
tinham tocado, mas já começavam a precipitar-se uns para dentro dos outros. Eles
dançavam, esplêndidos, gloriosos, e eu ao vê-los sei que nunca dancei.
Mais do que qualquer outro pecado, devereis
libertar-vos da tristeza. A tristeza não é um pecado, mas nenhum pecado
endurece tanto o coração como a tristeza.
Dito
hassídico citado por José Tolentino Mendonça em Que Coisa são as Nuvens
Legenda: não
foi possível identificar o autor/origem da fotografia
Nós levamos a sério a política. Nós levamos
a sério o país. Nós levamos a sério as pessoas. E é porque nos preocupamos com
elas e com o seu futuro que faremos o que é difícil, que faremos o que é
preciso, e esperamos que o que seja preciso e o que é difícil seja menos do que
aquilo que nós podemos fazer, porque podemos fazer mais do que aquilo que é
difícil, podemos também fazer aquilo que é necessário para que Portugal possa
ser, como a Espanha tem vindo a mostrar, como a Irlanda mostrou também, um país
em que no futuro todos querem apostar.
Os dedos de uma mão chegam para dizer as vezes
em que essas conversas não eram bem regadas.
Numa dessas
noites, a conversa girava à volta do Luiz Pacheco e, a determinado ponto, o
Helder deixou dito, preto no branco, que para compreender e sentir o Luiz
Pacheco era preciso ter passado fome.
Ficámos a
olhá-lo.
Ninguém
esboçou qualquer comentário.
Quando o
Helder Pinho desencantava saídas destas, ficava tão feliz como se lhe tivessem
oferecido uma bicicleta pelo Natal.
Legenda: fotografia de Helder Pinho da autoria de Maurício Abreu.
Ainda se encontram terras singulares neste
país. Desterradas do mundo e obrigadas a serem um mundo, criam-no à sua medida,
com todo o sentido prático que a necessidade impõe, e toda a liberdade
imaginativa que os lazeres permitem. O bafo de cada habitante a aquecer o
vizinho, a carga de presuntos a servir de unidade monetária, a lei codificada
em parábolas, histórias fantásticas em que os penedos, cansados da incómoda
imobilidade milenária, mudam ardilosamente de posição, e torres de cortiços
sobrepostos permitem alargar os horizontes da inquietação emparedada. O real e
o irreal agasalhados no mesmo gabão. Nós sociais apertados, que nenhuma força
centrífuga consegue desatar, correspondem sempre a nós cegos telúricos que a
natureza não deixa desfazer. E há nem sei que sedução envolvente bessa coesa
harmonia entre o antropológico e o geográfico – a eternidade humana reflectida
no espelho da eternidade panorâmica.
Miguel
Torga, Diário Volume X
Legenda:
Fajão
O texto de
Miguel Torga está datado de 21 de Julho de 1968
Disse um dia a um jornal que os erros dos
que estão mais próximos dos meus ideais, mesmo só em teoria, nunca me farão
cair nos braços dos inimigos desses mesmos ideais. Disse-o então, digo-o agora.
Amanhã a mesma coisa. Espero.
Há mais cinema nas séries de televisão
americanas do que nas salas. Grandes histórias, grandes argumentistas, grandes
actores. Muitos adultos não estão interessados em ir a um filme onde se come,
onde há barulho de pipocas e o sorver do fim da Coca-Cola, mensagens de
telemóvel, e-mails... Não estão para isso! Portanto, não vão, ficam em casa. O
cinema passou a ser um entretenimento. Deixou de ser uma sala escura, quase uma
missa onde se celebrava, apagavam-se as luzes, as pessoas ficavam todas muito
caladinhas. No teatro desliga-se o telemóvel e não se come. Por que hão de
comer no cinema? E tudo porque o cinema é um negócio. Num bilhete de cinema,
uma distribuidora ganha dois euros, o exibidor ganha um ou dois. Mas ganham na
pipoca e na Coca-Cola! Querem filmes onde se possa comer e beber. E eu não sei
fazer isso.
A segunda criticava um bom poeta soviético,
então de visista a Portugal – Ievtuchenko – que caíra, por inadvertência ou
ignorância dos truques fascistas, na armadilha de se deixar fotografar por
debaixo de um galo, espécie de brasão do S.N.I. Não pôde com certeza evitá-lo,
o poeta.
É este o
poema:
Meu filho, queres saber
porque recusei fazer o papel de paisagem
e não entrei no elenco
da farsa que houve aí de homenagem
a Ievtuchenko?
Primeiro: porque já estou velho para pagem.
Depois, porque quase chorei quando vi
que foram fotografá-lo
debaixo do galo
do S.N.I.
Ah! Ievtuchenko,
que pensarão das tuas fotografias
e desse galo torto
(que tão bem te define)
as raivas do coração fundo
dos presos de Caxias!
E Lenine?
Que pensará o camarada Lenine
que - sabias? -
até depois de morto
fez a revolução no outro mundo?
Passagem dos concorrentes da 29ª Volta a Portugal em Bicicleta na Ponte, recém inaugurada. Cumpria-se a 15ª etapa entre Lisboa e Estremoz que veio a ser ganha por Leonel Miranda do Sporting. Esta 29ª Volta teve um percurso total de 2.341 quilómetros divididos por 21 etapas. A Volta seria ganha por Francisco Valada do Benfica com 64 horas, 38 minutos e 36 segundos. O Benfica também ganhou por equipas, seguido do Porto, do Tavira, do Sporting, da Cedemi, da Flandria e do Sangalhos. Sérgio Páscoa do Tavira foi o vencedor do Prémio da Montanha. Estes eram os tempos em que a Volta a Portugal era um acontecimento nacional. Hoje, não passa de travesti de volta.
Eu era rapazinho quando Maruja entrou na
minha vida. Apareceu a morar com os avós num andar do meu prédio. E era ruiva,
via-se que ninguém conseguia domar aquela imensa rama de cabelos que chispava,
feroz, em torno da pele melada e dos olhos muito azuis. Usava golas brancas,
quadradas sobre as costas, de modo a por assim exibir prova das suas ascendências
marinheiras. O pai, contava ela, morrera num naufrágio, deixara-se afundar com
o navio. E ela própria já dera a volta ao mundo. Sobre a mãe não falava e, como
tinha o dom tão raro nas crianças de inspirar confiança e esfriar tentativas de
mais intimidade, nunca nenhum de nós lhe perguntou por ela. À Maruja, as
perguntas que podiam fazer-se eram sobre piratas ou ruelas chinesas – jamais
sobre a família ou hábitos domésticos.
O Sol pôs-se; o crepúsculo desceu sobre as
águas e surgiram luzes ao longo das margens. O farol Chapman, uma engenhoca de
três pernas erguida num baixio lamacento, brilhava intensamente. Luzes de
navios moviam-se no passo navegável – um grande vaivém de luzes para cima e
para baixo. E para oeste, a montante, o local da cidade monstruosa continuava
sinistramente assinalado no céu: uma caligem ensimesmada à luz do Sol, um
clarão lívido sob as estrelas.
O tempo, neste caso, não é uma medida. Um
ano não conta, dez anos não são nada. Ser artista é não contar, é crescer como
a árvore que não apressa a sua seiva, que resiste, confiante, aos grandes
ventos da Primavera, sem temer que o Verão possa não vir. O Verão vem. Mas só vem
para aqueles que sabem esperar, tão calmos como se tivessem na frente a
eternidade. Aprendo-o todos os dias à custa de sofrimentos que bendigo: a paciência é tudo.
Primeira
página do Notícias de Portugal, 20 de
Agosto de 1966, boletim semanal de propaganda da ditadura.
A fotografia
mostra o general França Borges, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a
entregar a Salazar a medalha de gratidão da cidade.
A história
regista que Salazar nunca foi um entusiasta da construção da Ponte Sobre o Tejo.
Nota-se-lhe
o ar de frete a receber a benesse.
Mas o regime
entendeu que teria de existir mais uma vassalagem ao ditador.
A medalha
foi entregue no Forte de Santo António da Barra, em S. João do Estoril, local
que Salazar sempre escolheu para passar alguns dias de férias.
Foi neste forte que
Salazar, no dia 3 de Agosto de 1968, caiu de uma cadeira, bateu com a cabeça no
chão e a ditadura encetava os primeiros dias do resto da sua tenebrosa
existência.
Sabes tu, Ir-me em Guarda, o que é viver dez
anios agarrado ao gargalo da Glenfiddich? Todas as mulheres se me lembram
fermento de aveia, nem uma pouca de louro para a testa. Caçadoiras caçantes. E
dizia eu, no posfácio de Z., que, matar-me: nem aos poucos, nem aos muitos.
É meio-dia e meia Jack Daniels. O esmalte
foi-se. Fiquem os dedos. Maria S.: Você tem pouca paciência com os meus lutos.
Qual Imogen:
«Perder duas misses escrevedoiras é azar;
três é desleixo, Aleixo.» Parafraseava; simile modo me pôs a escavadoira Royal
ladeada de cravos verdes. Eu? de Óscar Selvagem? A ideia há-de haver de ter
vindo de mano Salvador: - Aleixo, tanta força para rimar com desfecho. «Quem
não pode arreia», disse-lhe eu como se nele isso não fosse um hábito; professor
monge, o sacana: ter tudo. ‘Pera aí, Belinha. Pois «Quem não tem competência
não se estabelece», dixit chulo à puta-atraso-vida.
Aprendi, tarde. Lisboa esmaga quando não esborrata.
- O Sebastião está como aquele burro da
fábula, do Buridan, sabe? (o Mota não entendeu sequer o nome), que tinha fome e
sede e não foi capaz de se decidir pela comida ou pela água que lhe ofereciam.
E morreu à míngua…
As
entrevistas que Baptista- Bastos publicou no semanário O Ponto, fizeram um
tempo.
O autor
entendeu, muito bem, seleccionar algumas e reuni-las em livro, publicado em
Abril de 1984.
São notáveis
entrevistas, provavelmente datadas, mas mesmo assim importantes para se ficar a
conhecer algumas das personagens que fizeram esse tempo.
São
intérpretes: Otelo, Manuel da Fonseca, António Victorino d’Almeida, João
Camossa. Fernando Lopes-Graça, Artur Correia. Lucas Pires. António Arnaut,
Maria João Seixas, Manuel Alegre, Guilherme de Melo, Lena d’Água, Almeida
Santos Davis Mourão Ferreira, Helena Roseta, Fernando Lopes, Ary dos Santos,
Alexandre O’Neill, Lídia Jorge, José Mário Branco.
Reproduzo a
abertura da entrevista a Fernando Lopes Graça, a que Baptista-Bastos chamou As Utopias Também
se Realizam, feita na sua casa, um modesto segundo andar de uma vivenda, na Parede:
Encontrar no Boteco os violinos fantásticos de Felix Slatkin que tocam Bonanza, Exodus, The Magnificent Seven, Tha Song of Delilah. Um tempo em que as orquestras estavam na moda: Helmut Zacharias, Mantovani, Frank Pourcel, Percy Faith, James Last, tantas outras Há muitos e variados exemplos cá pela casa. Bonanza, foi uma série, a preto e branco, que fez as delícias da minha adolescência. As aventuras no rancho Ponderosa com Ben Cartwright e os filhos: Adam, Little Joe e o gordo Hoss. Sair de casa para ir ao café da esquina ver o Bonanza. Poucos tinham televisão, e eram os cafés de bairro que cumpriam a missão de serviço público.
O Luiz
Pacheco acaba de publicar um livro a que chamou Exercícios de Estilo.
Reúne alguma
parte dos seus textos que andam para aí espalhados em folhetos e pedaços de
papel, o que só meia dúzia de felizardos consegue apanhar. Esses papeluchos que
o Pacheco faz de vez em quando para, como ele diz, dar p’ra bucha. Custam cinco
ou dez paus mas a gente dá sempre vintes porque é para o Pacheco. E, por favor
não chamem a isto piedade ou caridade.
Luiz José Machado, Gomes Guerreiro Pacheco,
nasceu em 7 de Maio de 1925 e espera morrer no ano 2000. Está bem disposto,
porque está desempregado. Publicou muitos livros de outros autores. Não se lembra
de publicar nada (dele) que prestasse. Escreveu muitas obras e perdeu quase
todas. Teve três mulheres, nove filhos e netos, nem conta. Folhetos de sua
autoria: Os Doutores, e o Menino e a Salvação, Carta Sincera a José Gomes
Ferreira, O Teodolito, Os Namorados, o Cachecol do Artista. Teve 18 valores na
admissão. O Urbano teve 12.
É altura de
muito boa gente inclinar-se sobre a prosa livre, louca e viva do Pacheco.
Tomarão contacto com um dos homens mais interessantes destes dias que aqui se
vivem.
Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo
dos fundos, lá, onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o
vómito; fui às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o
passado quase esqueci.
O livro
custa setenta paus. O Pacheco também já vende caro. Mas esqueçam isso pois vale
bem a pena o dinheiro gasto. Temos andado todos a (fazer por) esquecer o
Pacheco. É altura de o descobrirmos (?) e ao seu humor louco e rebelde – isto de
adjectivos no Pacheco até parece heresia – para que daqui a uns anos não se ter
remorsos e raiva por ignorarmos este
tipo que é gente grande e dá pelo nome de Luiz Pacheco.
Mas Pacheco é principalmente, para muita
gente, um péssimo exemplo de se ser escritor!... escreveu Serafim Ferreira
A gente vê
no Pacheco aquilo que não pode ser: por vergonha, ou falta de coragem. Porque
há quem não goste do Pacheco. Não por aquilo que ele faz, ou pela maneira como
anda vestido, mas sim por aquilo que ele representa.
Perdi os meus livros todos! Perdi muito
tempo já. Se querem saber tudo, perdi a honra. Roubei. Sou o que se chama, na
mais profunda baixeza da palavra um desgraçado. Sou, e sei que sou.
Mas alto lá! Sou um tipo livre, intensamente
livre até ser libertino (que é uma forma real e corporal de liberdade, livre
até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre em português.
Pacheco
está, agora, repleto de malandrice, a espreitar-nos das montras das livrarias.
Histórias, Memórias, Imagens e Mitos Duma
Geração Curiosa
Eduarda
Dionísio
Círculo de
Leitores, Lisboa, Novembro de 1981
Um homem não nasce, nem para ser
espezinhado, nem para matar. Um homem não nasce para ser castigado sem razão.
Um homem é um homem. Um homem nasce para amar e para lutar, pela justiça, por
todos os homens. Um homem vice com outros homens. Um homem que luta, ama. Um
homem que luta, ama, ama a lutar. Ir para a guerra colonial não tem nada que
ver com a luta nem com o amor, nem sequer com ódio. Carlos assustou-se com o
que dizia. A quem dizia? O quê?
Foi chamado à reitoria: - Padre, tenho muita
consideração pelo seu valor intelectual, pelas suas qualidades pedagógicas.
Penso que os seus serviços aqui deixaram-nos de ser úteis, Padre. Chegou-me aos
ouvidos que o Padre apelava à deserção. Aconselho-o a pedir ao Patriarcado
mudança de liceu. Se não o fizer, eu faço-o. Penso que seria pior para si, É um
conselho de amigo, Padre. Nunca pensei que chegássemos a esta situação.
Chego agora ao final da minha defesa mas não
a acabarei, como os advogados geralmente fazem, pedindo que os acusados sejam
libertos. Não posso pedir liberdade para mim enquanto os meus camaradas sofrem
na ignominiosa da Ilha dos Pinheiros. Enviai-me para lá, para que me junte a
eles e partilhe do seu destino. É compreensível que os homens honestos sejam
mortos ou presos numa República em que o Presidente é um criminoso e um ladrão.
Para vós, Meretíssimos Juízes, a minha
sincera gratidão por me haverdes permitido exprimir-me, livre de desprezíveis
destrições. Não guardo amargura contra vós e reconheço que, em certos aspectos,
tendes sido humanos. Sei que o Presidente deste Tribunal. Homem de uma
impecável visa privada, não consegue disfarçar a sua repugnância perante o
corrente estado de coisas que o obriga a tomar decisões injustas.
Mas um problema mais sério está ainda para
resolver nesta sessão: as decisões a tomar quanto ao assassinato de setenta
homens, ou seja, quanto ao maior massacre que jamais conhecemos. Os culpados
continuam em liberdade e de armas na mão – armas que contìnuamente ameaçam os
cidadãos. Se todo o peso da lei não cai sobre os culpados, por causa da
cobardia ou do domínio sobre os tribunais, e se, em tal caso, todos os
magistrados e juízes se não demitirem, causais-me pena. E lamento a vergonha
sem precedentes que recairá sobre o poder jurídico.
Sei que estar na prisão será, para mim, tão
duro como alguma vez o foi para alguém, rodeado de ameaças cobardes e perversas
torturas. Porém, não temo a prisão, tal como não temo a fúria do miserável tirano
que roubou as vidas a setenta dos meus camaradas.
Condenai-me. Isso não importa. A História me
absolverá.
Nota do
editor: A História Me Absolverá é o
texto da alegação dirigida por Fidel de Castro ao Tribunal que o julgou, à porta
fechada, após o insucesso da sua primeira insurreição, em 26 de Julho de 1953,
contra o regime de Batista.