Contos Exemplares
Sophia de
Mello Breyner Andresen
Capa: João
da Câmara Leme
Colecção
Contemporânea nº 85
Portugália
Editora, Lisboa, Abril de 1966
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que
consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser
dirigente da “Liga Internacional das Mulheres Inúteis”, ajudar o marido nos
negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar
muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de
toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem
dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde,
levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser
sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo
exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas
parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem–se sempre ou do
ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo
e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica
trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e
todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à
poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma
vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele
que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é
oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à
santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina
severa. Como se diz no circo, “qualquer distracção pode causar a morte do
artista”. Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem
escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão,
ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E
como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os
percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre
muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa
toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que
possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da
estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos
outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino
de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e
é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um
cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que
todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A
chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na
praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que
Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem
tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é
nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não
são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando
para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o
divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à
santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos
de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando
os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua.
E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a
humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e
os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações
com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes,
admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que
está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício
construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica.
Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando
com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há
evidentemente nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima e toda a
gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os
une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a
sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio, o mais
firme fundamento do seu poder.
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