terça-feira, 23 de agosto de 2016

OLHARES


Ainda se encontram terras singulares neste país. Desterradas do mundo e obrigadas a serem um mundo, criam-no à sua medida, com todo o sentido prático que a necessidade impõe, e toda a liberdade imaginativa que os lazeres permitem. O bafo de cada habitante a aquecer o vizinho, a carga de presuntos a servir de unidade monetária, a lei codificada em parábolas, histórias fantásticas em que os penedos, cansados da incómoda imobilidade milenária, mudam ardilosamente de posição, e torres de cortiços sobrepostos permitem alargar os horizontes da inquietação emparedada. O real e o irreal agasalhados no mesmo gabão. Nós sociais apertados, que nenhuma força centrífuga consegue desatar, correspondem sempre a nós cegos telúricos que a natureza não deixa desfazer. E há nem sei que sedução envolvente bessa coesa harmonia entre o antropológico e o geográfico – a eternidade humana reflectida no espelho da eternidade panorâmica.

Miguel Torga, Diário Volume X

Legenda: Fajão

O texto de Miguel Torga está datado de 21 de Julho de 1968

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