terça-feira, 30 de agosto de 2016

WALT WHITMAN


Uma noite, na Brasileira do Chiado, meados dos anos 60, eu e o Zé Ferraz, mesas cheias de intelectuais, outras gentes, também pides, e o Armindo a entrar porta dentro, com a sua pasta de cabedal preto, que colocava ao seu lado como se fosse um cão. 

Bica escaldada pedida, começou a tirar da pasta uma série de folhas A4, que eram poemas de Walt Whitman que ele acabara de traduzir.

O Armindo deu a cada um de nós, cópias dessas traduções que ele tivera o cuidado de passar a papel químico. Longe estava o mundo das fotocópias.

Foi assim que conheci Walt Whitman.

Digo com mágoa: não sei que descaminhos levaram essas traduções, excelentes traduções.
Armindo, um jovem cheio de talento que um dia, para fugir à guerra colonial se exilou em Paris, e de quem não mais tive notícias.

O Zé Ferraz também seguiu os mesmos passos, e também o silêncio.

Walt Whitman, autodidacta, aprendiz de tipografia, jornalista, enfermeiro na Guerra da Secessão confortando soldados, escrevendo-lhes cartas para os familiares, lendo-lhes poemas. Assumindo a sua homossexualidade, em tempos tão difíceis para esses sentimentos, teve de enfrentar os mais diversos ódios e incompreensões.

Como os de um crítico de um jornal de Boston em 1855:

O autor devia ser corrido a pontapés de qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas. Não há inteligência nem método nesta tagarelice desarticulada e cremos que deve tratar-se de um pobre louco fugido do manicómio em pleno delírio.

Ou os de um crítico londrino:

Mas que direito tem este Walt Whitman de ser considerado um poeta? A sua familiaridade com a arte é tão escassa como a de um porco com a matemática.

Mas o seu pensamento, livre e corajoso, tudo varreu.

Fernando Pessoa, via Álvaro de Campos, em Junho de 1915, envia-lhe uma saudação de que se reproduz um extracto:

Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os objectos de fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.

Federico Garcia Lorca, em 1930, escreve-lhe uma ode, musicada há uns anos por Patxi Andion e que está incluída no álbum Poetas en Nueva York, um trabalho, publicado em 1986, por ocasião dos 50 anos do assassinato, pelo franquismo, deFederico Garcia Lorca:

Ni un solo momento, Viejo hermoso Walt Whutman,
he dejado de ver tu barba llena de mariposas,
ni tus hombros de pana gastados peor la luna,
ni tus muslos de Apolo virginal,

ni tu voz como una columna de ceniza.



Também Pablo Neruda:

Eu não me lembro
com que idade,
nem onde,
se no grande Sul molhado
ou na costa
temível, sob o breve
grito das gaivotas,
toquei certa mão e era
a mão de Walt Whitman:
pisei a terra
com os pés descalços,
andei sobre o pasto,
sobre o firme orvalho
 de Walt Whitman.

Yeats, Ezra Pound, Allen Ginsberg, também saudaram Walt Whitman.

E ainda há Robin Williams, em O Clube dos Poetas Mortos, a recitar Oh capitain, my capitain!

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