Uma
noite, na Brasileira do Chiado, meados dos anos 60, eu e o Zé Ferraz, mesas
cheias de intelectuais, outras gentes, também pides, e o Armindo a entrar porta dentro, com a sua pasta de cabedal
preto, que colocava ao seu lado como se fosse um cão.
Bica escaldada pedida,
começou a tirar da pasta uma série de folhas A4, que eram poemas de Walt
Whitman que ele acabara de traduzir.
O
Armindo deu a cada um de nós, cópias dessas traduções que ele tivera o cuidado de
passar a papel químico. Longe estava o mundo das fotocópias.
Foi
assim que conheci Walt Whitman.
Digo
com mágoa: não sei que descaminhos levaram essas traduções, excelentes
traduções.
Armindo,
um jovem cheio de talento que um dia, para fugir à guerra colonial se exilou em
Paris, e de quem não mais tive notícias.
O Zé
Ferraz também seguiu os mesmos passos, e também o silêncio.
Walt Whitman, autodidacta, aprendiz de tipografia, jornalista, enfermeiro na Guerra da Secessão confortando soldados, escrevendo-lhes cartas para os familiares, lendo-lhes poemas. Assumindo a sua homossexualidade, em tempos tão difíceis para esses sentimentos, teve de enfrentar os mais diversos ódios e incompreensões.
Como os
de um crítico de um jornal de Boston em 1855:
O autor devia ser corrido a pontapés de
qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas.
Não há inteligência nem método nesta tagarelice desarticulada e cremos que deve
tratar-se de um pobre louco fugido do manicómio em pleno delírio.
Ou os
de um crítico londrino:
Mas que direito tem este Walt Whitman de ser
considerado um poeta? A sua familiaridade com a arte é tão escassa como a de um
porco com a matemática.
Mas o seu pensamento, livre e corajoso, tudo
varreu.
Fernando
Pessoa, via Álvaro de Campos, em Junho de 1915, envia-lhe uma saudação de que se
reproduz um extracto:
Portugal-Infinito, onze de Junho de mil
novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu
cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em
Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos
concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a
diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores,
pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das
meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro
aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros
saudando Deus!
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo
em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos
os propósitos
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de
produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a
vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Electricidade
futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os objectos de
fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares,
paneleiro de Deus!
Eu, de monóculo e casaco exageradamente
cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o
não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente
cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e
amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano
em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste,
e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e
me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn
Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo
que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá
estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando
o universo na alma.
Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é
Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus
beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e
agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado
no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da
minha alma.
Federico
Garcia Lorca, em 1930, escreve-lhe uma ode, musicada há uns anos por Patxi
Andion e que está incluída no álbum Poetas en Nueva York, um trabalho,
publicado em 1986, por ocasião dos 50 anos do assassinato, pelo franquismo, deFederico
Garcia Lorca:
Ni un solo momento, Viejo hermoso Walt
Whutman,
he dejado de ver tu barba llena de mariposas,
ni tus hombros de pana gastados peor la luna,
ni tus muslos de Apolo virginal,
ni tu voz como una columna de ceniza.
Também
Pablo Neruda:
Eu não me lembro
com que idade,
nem onde,
se no grande Sul molhado
ou na costa
temível, sob o breve
grito das gaivotas,
toquei certa mão e era
a mão de Walt Whitman:
pisei a terra
com os pés descalços,
andei sobre o pasto,
sobre o firme orvalho
de Walt Whitman.
Yeats, Ezra Pound, Allen Ginsberg, também saudaram
Walt Whitman.
E ainda
há Robin Williams, em O Clube dos Poetas Mortos, a recitar Oh
capitain, my capitain!
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