quarta-feira, 31 de agosto de 2016

OS MESTRES CANTORES DE PARDILHÓ


A aldeia, encostada à Ria de Aveiro, tem uma boa mancheia de habitantes dependendo da terra ou das fábricas próximas, meia dúzia de cafés vulgares, uma estação dos Correios, uma cabine telefónica, uma agência bancária, dois carros de praça e um largo ajardinado com um quiosque e uma estátua. Já houve calafates, hoje resta um em actividade; o próprio sindicato da classe fechou. Às três da tarde de todos os Verões os senhores cansados dormem a sesta.
A estátua deveria simbolizar o Emigrante mas falhou miseravelmente porque se parece com a deum poeta que lá mais para o Norte noutro quadrado do mapa. Como se não bastasse esse desaforo a Junta de freguesia lembrou-se de embelezar o pedestal com uns versos tão cruéis que talvez só o autor os siaba de memória. A melhor estatuária local são ios bustos de Simón Bolivar espalhados pelos quaintais dos «venezuelanos», há um que brinda mesmo ao «libertador da Pátria».
Sempre que regresso numa data qualquer do mês de Agosto, o meu primeiro cuidado é arrumar os livros no escritório do falecido senhor meu sogro, ir ao bazar por papel e canetas de feltro, e esperar a manhã inaugural das férias com uma impaciência feita de sobressaltos e alta voltagem arterial. Na manhã seguinte eles lá estão, os melros, aquecendo a gorja para me saudarem. Primos irmãos, não escondem o afecto nem eu lhes perdoaria tal. Houve um que vinha cantar-me no rebordo do grande alpendre, fiado no professor francês: «E para começar, música!»
Se era lição aprendi-a porém mal, pois cada vez mais a dissonância vem tomando conta da minha poesia, ao ponto de poder ser confundida com prosa baça. Pouca vigilância, talento disperso: uma explica o outro, e vão vividos os anos suficientes para eu não mudar um mícron que seja. Agora espero a velhice e dentro dela a morte surda.

Fernando Assis Pacheco em Respiração Assistida

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