segunda-feira, 21 de março de 2022

THE MAN IN BLACK


“…Well you wonder why I always dress in black

Why you never see bright colour in my back

And why does my appearance seem to have a somber tone

Well, there’s a reason for the things that I have on


I wear the black for the poor and beaten down

Living in the hopeless, hungry side of town

I wear it for the prisoner who has long paid for his crime

But is there because he’s a victim of the times”

(Johnny Cash – Man in Black)


Há tempos, a propósito de Hank Williams, contei-vos que na minha juventude, com um misto de snobismo e enorme ignorância, sentia alguma aversão pela “Country Music”, embora abrisse uma exceção para Johnny Cash.

Não posso garantir, mas é muito provável que o primeiro contacto que tive com a obra de Cash tenha sido o álbum “At San Quentin”, lançado em 1969, tal a forma como esse disco me marcou: a voz de Cash, o acompanhamento musical, a companhia da sua mulher, June, em algumas canções, e aqueles inesquecíveis “pis” de censura cada vez que Cash largava um palavrão, o que sucedia com muita frequência.

É provável que também tivesse achado louvável essa ideia de gravar um disco numa prisão (até era o segundo, mas isso não o sabia eu, na altura), numa época em que quase tudo o que se gravava ao vivo era em festivais de música ou em grandes salas de espetáculo. E se os prisioneiros se faziam ouvir bem nesse disco…!

E sempre mantive um grande carinho em relação a Johnny Cash, que nasceu em 1932 em Kingsland, no Arkansas, quinto filho de um casal de fazendeiros muito pobre.

Não teve vida fácil, a começar pela escolha do nome. Pai e mãe não se entenderam e ele acabou por ser registado J. R., assim mesmo, só com as iniciais…! Mas quando chegou ao exército não aceitavam iniciais como nome, e ele teve de transformar o J. R.  em John Ray, que depois passaria a Johnny quando começou a cantar como profissional.

Com 5 anos já trabalhava nos campos de algodão e a memória que guardou desses tempos assenta que nem uma luva a tudo quanto vos tenho contado acerca da importância da música ligada ao trabalho rural, seja nas planícies de algodão do Mississippi ou nas plantações de tabaco dos Apalaches:

“A música e as canções eram o que nos distraia do trabalho árduo dos campos. Transportava-nos …  Transportava os nossos espíritos para longe do trabalho, para longe da dor e para longe do sofrimento. Se não tivéssemos podido cantar, acho que não teríamos aguentado. Cantar ajudava a encurtar o dia…”.

Desses tempos de infância guardou um trauma que o acompanharia por toda a vida. Numa tarde de sábado em que fora pescar e tomar banho no rio, o irmão Jack, uns anos mais velho, ficou a trabalhar numa quinta para ajudar no sustento da casa e morreu quase cortado ao meio, num acidente com uma motosserra. Cash nunca perdoou a si próprio ter-se ido divertir, em vez de ter ficado a ajudar o seu irmão preferido. Mas, mesmo que se quisesse esquecer desse triste acontecimento, o seu pai trataria de não o deixar, deitando-lhe frequentemente à cara ter sido uma lástima ter morrido o “filho bom” e ter ficado vivo o “filho mau”… Imagine-se o efeito disto em alguém que já de si mostrava alguma tendência para a depressão… 


Na música, tal como Hank Williams e Elvis (só para referir quem já por aqui passou…), também começou pelo “Gospel”, embora sem grande sucesso público nos primeiros tempos. Mais tarde, já consagrado, haveria de editar diversos LP’s de “Hymns”. 

Mas seria em Memphis, em 1955, pouco tempo depois de ter regressado do Serviço Militar na Alemanha, que faria a primeira gravação (“!Cry!, Cry!, Cry”), na célebre “Sun Records” de Sam Philips, de que um destes dias vos falarei. Durante os anos que se seguiram Cash foi, juntamente com Elvis Presley, Carl Perkins e Jerry Lee Lewis, uma das principais figuras desse lendário estúdio que viu nascer o Rock ‘n’ Roll, tendo ficado na sua história como o primeiro “da casa” a lançar um LP.

Depois, andou sempre pelos sítios certos e esteve, quase sempre, do lado certo da barricada.

Bateu-se pela reforma do sistema prisional, apelou à dignidade e ao reconhecimento dos direitos civis do povo Índio, a quem em 1964 dedicou um álbum inteiro, este “Bitter Tears” que vos mostro, com o subtítulo de “Ballad of the American Indian. E também condenou a Guerra do Vietname, como veremos adiante.

Em 1980, quando entrou para o “Country Music Hall of Fame”, em Nashville, a respetiva placa descreve-o da seguinte forma: SONGWRITER, HISTORIAN, FIGHTER OF CAUSES, FRIEND TO THE DEPRIVED AND TROUBLED….

Embora associemos sempre Cash às prisões e a uma vida de “outlaw”, a verdade é que pode ter entrado em muitas, mas só passou uma noite numa prisão. Foi em El Paso, no Texas, após ter sido apanhado a atravessar a fronteira entre o México e os EUA com anfetaminas escondidas no interior da guitarra.

Foram tempos difíceis para ele, esses da primeira metade dos anos sessenta em que se viciou nas anfetaminas, alegadamente para conseguir aguentar a dureza da vida na estrada, com espetáculos uns atrás dos outros e a longas distâncias uns dos outros.

Álcool e drogas é mistura explosiva, já se sabe, e nem sempre Cash terá feito boa figura. Um exemplo disso é a sua participação, meio-pedrado, no célebre programa de televisão de Pete Seeger, “Rainbow Quest”, em 1966. Está disponível no YouTube, para quem o quiser ver.

 

Algures por essa altura mergulhou nos olhos azuis de June Carter, com quem tinha gravado um LP e com quem já tinha andado em “tournée” desde o início dos anos sessenta, e nunca mais voltou à tona.

Parece não lhe ter sido fácil nem obter o “sim” de June e a aprovação da mãe dela, a célebre Maybelle Carter da Carter Family de que já aqui vos falei, nem, sobretudo, deixar para trás a mulher, Viviane Liberto, com quem se casara em 1954 e as quatro filhas do casal.

E essa hesitação ainda mais terá agravado a sua dependência do álcool e das drogas.

É a altura em que nos questionamos se fará sentido tentar construir a nossa própria felicidade à custa da infelicidade de alguém… 

É quando se pensa nas crianças… Nos pequenos gestos essenciais… O beijo na testa, o aconchegar do cobertor, o último olhar para a serenidade desses rostos adormecidos antes de se apagar a luz e de se fechar a porta do quarto, que nunca mais se farão da mesma maneira.


 Provavelmente ter-se-á lembrado da muito bonita “I Still Miss Someone”, que escrevera em 1958:

“I wonder if she’s sorry

For leavin’ what we’d begun

There’s someone for me somewhere

And I still miss someone” 

É a saudade que fica a remoer-nos por dentro…


Mas Cash foi determinado e libertou-se do álcool e das drogas, condição imposta por June e pela sua mãe. Casaram em 1968, tiveram um filho, John Carter Cash, hoje também músico, e viveram felizes para sempre numa bonita casa em Hendersonville, mesmo à beira do “Old Hickory Lake”, a 30 km de Nashville.

Não pretendo maçar-vos contando a vida de Cash de fio a pavio, mas apenas duas ou três histórias reveladoras do seu carácter e da sua personalidade.

Embora não tenha aderido inteiramente à causa, foi “compagnon de route” dos “folksingers” dos anos sessenta e grande amigo de Pete Seeger e de Bob Dylan, entre tantos outros.  Muitos deles foram convidados para o lendário “show” semanal que manteve durante alguns anos na cadeia ABC, “The Johnny Cash Show”, apesar de ter sofrido pressões de toda a natureza.

Por exemplo, para não convidar o “perigoso comunista” Pete Seeger, impedido de aparecer nos canais de grande difusão desde os tempos da “caça às bruxas”. Não só o convidou, retribuindo-lhe o favor que ele lhe fizera anos antes, como declarou em direto para quem o quis ouvir:

“As pessoas com quem tenho contactos disseram: “como te atreves a ser, supostamente, um bom americano e ter um comunista como Pete Seeger no teu programa de televisão?” O Pete Seeger que eu conheço e o Pete Seeger pelo qual eu e June nos encantámos, diria que é um dos maiores americanos e patriotas que já conheci”.

 Naquela América de Nixon, foi preciso ter coragem…


Numa outra ocasião, no mesmo programa, foi pressionado para censurar a canção de Kris Kristofferson “Sunday Morning Sundown”, retirando-lhe a expressão “wishing, Lord, I was stoned” e substituindo-a por “wishing, Lord, I was home”…! Recusou, é claro.   

E já que vos evoquei Nixon, em 1972 o Presidente, de quem Cash não era apoiante, convidou-o para atuar na Casa Branca, e pediu-lhe que cantasse “Welfare Cadillac”, uma canção de Guy Drake de que ele gostava muito e que satirizava as pessoas que, alegadamente, viviam à custa da Segurança Social, naquela dita “subsidiodependência” cuja critica hoje parece estar tão na moda na nossa direita radical mas que, afinal, não é original e já vem de longe. Só substitui Cadillac por Porsche…! 

Cash sabia muito bem que o seu convite para a Casa Branca tinha uma intenção política, que era a de, em vésperas da campanha desse ano, piscar o olho ao eleitorado do Sul, essencial para Nixon e grande fã do cantor. Mas, como bom americano que era, fiel ao seu país e respeitador da sua Presidência, não lhe passou pela cabeça recusar o convite. Pelo contrário, levou a Família inteira e fez questão de mostrar ao seu velho pai como é que o “filho mau” era bem recebido pelo Presidente dos Estados Unidos.

Cash não abriu muito o jogo quanto às canções que iria interpretar nessa noite, nem aos membros da sua própria banda. Mas era claro que não iria cantar a tal “Welfare Cadillac” pedida por Nixon, por não estar disposto a gozar com os mais pobres e os mais desprotegidos da América. 

Em contrapartida, cantou “What is True”, que acabara de compor, uma subtil canção de protesto e um libelo contra a Guerra do Vietname como havia muitas na “Folk”, mas que não eram nada habituais na “Country Music”. Perante uma Casa Branca enredada em mentiras e falsas acusações no que respeitava a essa Guerra, Cash nunca ousaria hostilizar frontalmente Richard Nixon, pelo que a canção é subtil e a mensagem sublimar, de tal forma que a maior parte da ilustre assistência de mais de 250 pessoas, aperaltada a rigor, bateu palminhas sem se ter apercebido de nada…   

Ainda a propósito do flagelo das drogas e da canção de Kristofferson, Cash afirmaria mais tarde:

 


“Passo muito do meu tempo a lidar com drogados e alcoólicos e só alguém que já teve esse problema é que pode ter, completamente, o amor, a compaixão e a compreensão por essas pessoas. Eu adoro drogados e adoro alcoólicos”.

E, depois, a conclusão, que talvez não esperássemos ouvir da boca dele com tanta clareza:

“Se alguma pessoa perdida e solitária numa cama suja e num quarto escuro conseguir ver a luz de Jesus Cristo em mim, então essa será a minha recompensa...”  

Foi a fase em que Cash se assumiu como o católico que sempre foi, e colaborou com o seu amigo Pastor Evangelista Billy Graham, participando em alguns dos seus megaeventos religiosos.

Personagem contraditório, certamente, e foi mesmo “a walking contradiction” que Kris Kristofferson lhe chamou nos belíssimos versos da sua canção “The Pilgrim”, de 1971, que alegadamente lhe é dedicada:

“He’s a poet, he’s a picker

He’s a prophet, he’s a pusher

He’s a pilgrim and a preacher and a problem when he’s stoned

He’s a walking contradiction, partly truth and partly fiction,

Takin every wrong direction on his lonely way back home”

Mas a partir dos finais dos anos 70 a sua carreira entrou em declínio.

Ao fim de quase trinta anos e de milhões de discos vendidos, a Columbia Records não lhe renovou o contrato, e o mesmo iria suceder com a Mercury, uns anos depois.

Aos seus espetáculos, que habitualmente atraiam milhares de pessoas, iam agora não mais de algumas poucas centenas.

Em meados dos anos 80 tentou mudar de estilo, integrando o supergrupo “The Highwaymen”, com os amigos Waylon Jennings, Kris Kristofferson e Willie Nelson, mas foi sol de pouca dura.

Para dificultar ainda mais as coisas voltaria às drogas, alegadamente para lhe atenuarem os graves problemas de estômago de que se queixava.

Mas ainda haveria de ter um derradeiro “come-back” nos anos 90 com uma série de discos muito sóbrios para a “American Recordings”, sob a orientação do Produtor Rick Rubin, em que se apresenta só com a sua voz e a sua guitarra acústica, contendo algumas “covers” de autores contemporâneos que lhe permitiriam tocar um público mais jovem.

Mas com a morte de June, em 2003, “the man in black” ainda mais de negro se vestiu. Não apenas por fora, mas ainda mais por dentro, seguramente…

“Ela era o meu pilar. A minha conselheira, a minha consoladora e tudo o mais. Que Mulher maravilhosa que ela era…!”.

Passariam menos de quatro anos até que Cash se lhe fosse juntar.

Tinha 71 anos, mas aparentava muito mais…

A sua vida mereceria um filme bem melhor do que aquele a que teve direito (“I Walk The Line”, de James Mangold - 2005).

Como sempre gostei de visitar casas onde as pessoas viveram felizes para sempre, apeteceu-me dar um saltinho a Hendersonville.

O programa para esse dia estava carregado porque teria de entrar no Kentucky para ir a Hodgenville, que é o lugar onde Lincoln nasceu e viveu toda a sua infância e adolescência, e depois ainda teria de passar por Rosine, ainda no Kentucky, que foi o local onde Bill Monroe e os seus rapazes literalmente inventaram um novo género musical, o “Bluegrass”.

Hendersonville não ficava propriamente em caminho, pelo que teria de fazer um pequeno desvio.

O dia também tinha nascido muito chuvoso, o que não augurava nada de bom para a viagem.

No mapa Hendersonville era já ali ao virar da esquina, mas, como sempre sucede nos Estados Unidos, esses “pequenos desvios” tornam-se sempre muito longos.

Durante o trajeto a chuva aumentara ainda mais e quando estacionei o carro defronte da casa de Johnny e June Cash foi como se tivesse chegado a uma delegação do Pentágono. Alertas, ameaças, proibições de todo o tipo...   

Gostaria de ter entrado.

Não para bisbilhotar a casa, que já sabia ter ficado meio destruída por um incêndio pouco tempo depois de Barry Gibb, dos Bee Gees, a ter comprado, mas para me sentar por breves instantes no alpendre sobre o lago, como John e June se costumavam sentar, sentir o vento no rosto, como eles sentiam, poisar o olhar nas águas calmas do lago, como eles poisavam…

Em circunstâncias normais estar-me-ia nas tintas para as proibições…  Não havendo sinais de cães de guarda que me incomodassem, saltaria lá para dentro, daria as minhas voltas e, se tocasse algum alarme daqueles à distância, quando alguém lá chegasse o mais certo seria eu já estar a milhas...

 


Mas a chuva não tinha parado e se já estava encharcado só de tirar fotografias, saltar aquele muro deixar-me-ia num estado deplorável e incapaz de prosseguir viagem.

Afastei-me, então.

Fiz uma última saudação íntima ao “man in black” e avancei para a terra de Lincoln, Homem que, curiosamente, também me lembro de ter sempre visto vestido de preto,,,  

PS:

As citações aqui reproduzidas foram retiradas dos documentários “I Am Johnny Cash”, de Jordan Tappis e Derick Murray”, realizado em 2016, e “Nixon And The Man in Black”, de Sara Dosa e Barbara Kopple, realizado em 2018. Este último está disponível na Netflix e detalha com rigor o “episódio Casa Branca”.


Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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