quinta-feira, 31 de março de 2022

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO


Por vezes, o cinema traz-nos filmes que, não atingindo certos níveis, se tornam simpáticos.

Sideways realizado em 2004 por Alexander Payne, é um desses filmes.

Miles é um professor de inglês, apreciador de vinhos, divorciado e que espera, há largos anos, a sua oportunidade para publicar um livro. Jack é um seu amigo e um actor menor que faz séries foleiras para televisão, ou voz-off para anúncios, e que está prestes a casar. Antes da cerimónia decidem, durante uma semana, fazer uma viagem, há muito sonhada pelos dois, em redor da rota dos vinhos da Califórnia.

Miles é o típico loser americano: a sua vida pessoal está em farrapos, após um divórcio que não consegue digerir, refugia-se em vinhos, em pornografia barata e pelo meio rouba dinheiro do porta-moedas da mãe.

Jack é um vândalo capaz de largar o amigo pela primeira saia que lhe apareça, de provar vinhos enquanto masca pastilha elástica e, dentro do carro, em viagem pelo sol escaldante da Califórnia, abrir uma garrafa de champanhe au naturel.

Numa paragem da rota dos vinhos, conhecem duas raparigas num restaurante. Jack dedica-se a engatar Stephanie, Miles entra numa de “expert” em vinhos e tem uma conversa com Maya, que também percebe de vinhos, e nasce uma conversa que marca o filme.

O diálogo, como todo o filme, é pautado por uma estupenda banda sonora de cariz jazístico e que, juntamente com as paisagens da Califórnia, dos diálogos, do humor, tornam Sideways um filme despretensioso mas bem interessante.

«Maya – Que preciosidades tens na tua colecção?

Miles – Não é uma grande colecção, na verdade. É mais uma pequena colect num armário. Nunca tive dinheiro para isso. Tenho de viver garrafa a garrafa. Estou a poupar uma coisa, sem dúvida. A estrela será o Cheval-Blanc de 1961.

Maya – Tens ali um Cheval-Blanc de 1961?

Miles – Sim, tenho!

Maya – Vai buscá-lo. Estou a falar a sério, despacha-te.

Miles – Já vou, já vou.

Maya – A colheita de 61 está a perder qualidade, não está? Pelo menos foi o que li!

Miles – Sim, é isso mesmo.

Maya – Pode ser tarde demais. De que estás à espera?

Miles – Não sei. Da ocasião especial com a pessoa certa. Devia ser para odécimo aniversário do meu casamento, mas...

Maya – A ocasião especial é quando abrires o Cheval-Blanc de 1961.



Miles – Há quanto tempo é que te interessas por vinho?

Maya – Entrei nisto a sério há cerca de sete anos.

Miles – E qual foi a garrafa responsável?

Maya – Sassicaia de 88.

Miles – Parabéns. Isso é muito bom.

Maya – Porque gostas tanto de Pinot? É uma característica ?

Miles – Não sei, não sei. É uma uva difícil de cultivar, como tu sabes, certo? É de pele fina, é temperamental e amadurece cedo. Não é uma sobrevivente como a Cabernet que cresce em qualquer lado e vinga mesmo sem ser cuidada. Não, a Pinot precisa de cuidados e atenção constantes. Na verdade apenas pode crescer em lugares específicos, em pequenos cantos do mundo. E apenas o mais paciente e carinhoso dos vinicultores consegue cultivá-la. Apenas quem tirar algum tempo para entender o potencial da Pinot pode obter alguma coisa dela na sua máxima expressão. E então, querdizer... o seu sabor é o mais assombroso, brilhante, subtil e o mais antigodo planeta. Os Cabernets também podem ser poderosos e excitantes... maspara mim, parecem-me vulgares, em comparação. E tu?

Maya – O que foi?

Miles – Por que gostas de vinho?

Maya – Acho que me meti no vinho por causa do meu ex-marido. Ele tinha uma grande adega, que usava para se exibir. Mas depois eu descobri que tinha um bom palato. Quanto mais eu bebia, mais gostava daquilo em que me fazia pensar.

Miles – Como o quê?

Maya – Como a fraude que ele era. Eu gosto de pensar na vida do vinho. No facto de se tratar de um ser vivo. Gosto de pensar no que se passou no ano do crescimento das uvas. Como o sol estava a brilhar. Se choveu. Gosto de pensar em todas as pessoas que trataram e colheram as uvas. E se for um vinho velho, quantas delas já devem estar mortas. Gosto da forma como o vinho continua a evoluir. Por exemplo, se eu abrir uma garrafa hoje terá um sabor diferente do que se a abrir em outro dia. Porque na verdade uma garrafa de vinho está viva. E está sempre a evoluir e a ganhar complexidade. Isto é, atingir o seu auge. Como o teu Cheval-Blanc de 61. Depois começa o seu destino lento e inevitável. E sabe maravilhosamente bem.»

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