Relógio de Cuco
Virgílio Martinho
Contraponto, Setúbal Janeiro de 1997
Eu amava o velho
pai como quem ama uma coisa inventada, sem palavras nem carinhos. Via-o enorme,
as pernas sempre a fugirem de mim, o corpo magro ligeiramente curvado e lá em
cima as fossas do seu nariz. E era esta e não outra a minha invenção de pai.
Via-o e era o mesmo que sentir-me duas vezes, como sombra na parede ou imagem
no espelho. Porque ele tinha um ar severo e grave, raramente me falava, nunca
me beijava, só uma vez me atirou com a mona às pernas. Como um pai que não há.
Trabalhava à noite na estação de Setúbal e dormia de dia na nossa casa dos
Quatro Caminhos, havia entre nós horários diferentes. Ele via a noite e a lua,
eu o dia e o sol, éramos ambos duas paralelas, uma maior outra mais pequena.
Encontrávamo-nos porém ao jantar mas o nosso infindável silêncio continuava a
ser o nosso silêncio, embora a mãe dos dentes brancos falasse e risse entre
nós.
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