Depois de no domingo voltarmos a saber o que é um dia de sol, o
cinzento abateu-se, de novo, sobre a cidade.
Andamos para tirar uma série de fotografias, diariamente adiadas pelo
tempo que tem feito.
Aproveitar, então, o dia para colocar recortes no arquivo, olhar os
jornais atrasados amontoados ao canto da sala que mostram que cerca de 5% dos
sem-abrigo de Lisboa têm um curso superior, que o trabalho escravo deixou de se
circunscrever ao Alentejo e alastrou pelo país fora, que o sorteio, em que o
governo, aos que pedem factura com número
de contribuinte, oferece automóveis topo de gama, parece convencer poucos consumidores,
enquanto o dono de um pequeno cafés se lamenta que, enquanto está um
cliente à espera que eu coloque os números no computador, estão quatro à espera
que eu tire um café, que juízes absolveram todos os arguidos do caso
dos submarinos que umas dezenas de
quadros de Miró, propriedade do BPN
,saíram ilicitamente de Portugal para serem leiloados em Londres, que o primeiro-ministro
com aquela cara de sacaninha-pequenino diz que estamos
a caminhar para viver dentro das nossas possibilidades, que a presidente da Assembleia da Republica sonha
todos as noites com cravos a enfeitar chaimites, feitos pela Joana Vasconcelos
para as comemorações do 25 de Abril, que
a maioria dos bancos encerraram os seus exercícios com milhões de euros de
prejuízo o que faz anunciar redução de salários e mais negociações para
diminuir o número de trabalhadores, que os agentes culturais dizem que a
cultura está a morrer em Portugal, que no final de 2013, o Estado tinha 563.595
trabalhadores, menos 22.000 do que no ano anterior, que ainda não se sabe se
sairemos do estrangulamento troikiano à irlandesa, ou se será uma saída limpa, seja
lá o que isso for, apenas a certeza de que o que vier a suceder nos vai
enterrar em mais austeridade, enquanto que Paquete de Oliveira, provedor do
leitor do jornal Público,
termina, deste modo, um dos seus
comentários:
O calendário que se segue é reinventar um país sem
Eusébio.
O que me leva a regressar à leitura de um belo relato que Manuel S.
Fonseca deixou no Escrever Triste:
Pé esquerdo puxa a bola para o pé direito e, corda
invisível, amarra o defesa louro. Pé direito devolve a bola para o bailarino
pé esquerdo e, raio laser de filme, há um guarda-redes imobilizado. Pé
esquerdo amoroso, gentil, inteligente, científico, artístico, remata em
vólei, colocadíssimo, colando a bola às redes junto ao poste esquerdo da
baliza dos aturdidos, paralisados, adversários. Enzo Pérez, argentino,
nascido em Mendoza, nas bordinhas das Cordilheiras do Andes, sabe que
acabou de assinar uma obra-prima. Foi golo e Enzo corre, salta e abraça. A
seguir, comove-se e deixa correr uma lágrima. De ternura, saber-se-ia depois…
Será que amanhã vai continuar a chover?
Sem comentários:
Enviar um comentário