segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

QUOTIDIANOS



Depois de no domingo voltarmos a saber o que é um dia de sol, o cinzento abateu-se, de novo, sobre a cidade.

Andamos para tirar uma série de fotografias, diariamente adiadas pelo tempo que tem feito.

Aproveitar, então, o dia para colocar recortes no arquivo, olhar os jornais atrasados amontoados ao canto da sala que mostram que cerca de 5% dos sem-abrigo de Lisboa têm um curso superior, que o trabalho escravo deixou de se circunscrever ao Alentejo e alastrou pelo país fora, que o sorteio, em que o governo, aos que pedem factura com  número de contribuinte, oferece automóveis topo de gama, parece convencer poucos consumidores, enquanto o dono de um pequeno cafés se lamenta que, enquanto está um cliente à espera que eu coloque os números no computador, estão quatro à espera que eu tire um café, que  juízes absolveram todos os arguidos do caso dos submarinos que umas dezenas de quadros de Miró, propriedade do BPN ,saíram ilicitamente de Portugal para serem leiloados em Londres, que o primeiro-ministro com aquela cara de sacaninha-pequenino diz que  estamos a caminhar para viver dentro das nossas possibilidades, que  a presidente da Assembleia da Republica sonha todos as noites com cravos a enfeitar chaimites, feitos pela Joana Vasconcelos para as comemorações do 25 de Abril, que a maioria dos bancos encerraram os seus exercícios com milhões de euros de prejuízo o que faz anunciar redução de salários e mais negociações para diminuir o número de trabalhadores, que os agentes culturais dizem que a cultura está a morrer em Portugal, que no final de 2013, o Estado tinha 563.595 trabalhadores, menos 22.000 do que no ano anterior, que ainda não se sabe se sairemos do estrangulamento troikiano  à irlandesa, ou se será uma saída limpa, seja lá o que isso for, apenas a certeza de que o que vier a suceder nos vai enterrar em mais austeridade, enquanto que Paquete de Oliveira, provedor do leitor do jornal Público, termina, deste modo,  um dos seus comentários:

O calendário que se segue é reinventar um país sem Eusébio.

O que me leva a regressar à leitura de um belo relato que Manuel S. Fonseca deixou no Escrever Triste:


Pé esquerdo puxa a bola para o pé direito e, corda invi­sí­vel, amarra o defesa louro. Pé direito devolve a bola para o bai­la­rino pé esquerdo e, raio laser de filme, há um guarda-redes imo­bi­li­zado. Pé esquerdo amo­roso, gen­til, inte­li­gente, cien­tí­fico, artís­tico, remata em vólei, colo­ca­dís­simo, colando a bola às redes junto ao poste esquerdo da baliza dos atur­di­dos, para­li­sa­dos, adver­sá­rios. Enzo Pérez, argen­tino, nas­cido em Men­doza, nas bor­di­nhas das Cor­di­lhei­ras do Andes, sabe que aca­bou de assi­nar uma obra-prima. Foi golo e Enzo corre, salta e abraça. A seguir, comove-se e deixa cor­rer uma lágrima. De ter­nura, saber-se-ia depois…

Será que amanhã vai continuar a chover?

Legenda: fotografia Duncan

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