sábado, 22 de fevereiro de 2014

OLHAR AS CAPAS



Os Anos Decisivos
Portugal 1962-1985
Um Testemunho

César Oliveira
Editorial Presença, Lisboa 1993

Em Cuimba pernoitámos após termos percorrido a escassa centena de quilómetros desde S. Salvador.
Procurei aí o tal capitão Ernesto Melo Antunes de quem, no calor de Luanda, o Assis Pacheco me falara.
Relativamente baixo e entroncado, óculos, sempre a fumar furiosamente cigarros de tabaco negro, recebeu-me com uma relativa desconfiança, até lhe começar dar algumas referências de que não podiam resultar equívocos ou incertezas. Abriu-se, então, num sorriso que simultaneamente envolvia os olhos e a boca, deixando apenas entrever os dentes, um sorriso «curto» e ao mesmo tempo franco e confiante, e na medida em que a nossa conversa progredia, manteve ainda esse sorriso. Para um canto do quarto (ou do gabinete?) que resguardava livros, e entregou-me para ler Les Damnés de la Terre de Frans Fanon – a «quase» Bíblia do anticolonialismo militante.
Lembro-me que lhe carpi mágoas, lhe falei de deserções que tinham ocorrido há pouco tempo,  mesmo ao lado do sector do nosso batalhão, no Luvo, com oficiais milicianos, um dos quais oriundo de Cabo Verde. Respondeu-me – naquele fim do mês de maio de 1964 – que o lugar dos antifascistas era nas Forças Armadas, que todas as possíveis mudanças políticas só poderiam vir dos militares que era necessário articular a sociedade civil com a militar em termos da ruptura com o regime e da construção da democracia. Olhei e ouvi, meio embasbacado, tanto me pareciam utópicas as palavras e os sonhos daquele capitão, o mais civil dos muitos militares que conheci.

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