Li há dias, e impressionou-me muito, que, quando Gandhi morreu, os bens
materiais que deixou valiam menos de dois dólares. Voltei a ler para verificar
se me tinha enganado: menos de dois dólares. Os bens espirituais e civis que
legou ao futuro tinham, porém, uma dimensão incalculável. O que nos enfraquece
não é, de facto, a escassez, mas a sobreabundância; não é a indagação, mas o
ruído de mil respostas fáceis que conflituam; não é a frugalidade, mas sim o
desperdício. O que nos enfraquece é não termos escutado até ao fim o que está
por detrás da fome e da sede, da nossa urgência e da nossa fadiga, do
atordoamento, dos medos ou da abstenção.
Há aquela cena do filme de Steven Spielberg "A Lista de
Schindler". O ator Liam Neeson representa o papel do industrial alemão que
salvou a vida a mais de mil judeus. Na cena final, os resgatados oferecem-lhe,
expressando a sua gratidão, uma aliança com uma frase do Talrnude. «Aquele que
salva uma vida, salva o mundo inteiro». E a resposta de Oskar Schindler é
inesquecível: «Podia ter feito mais. Não sei, eu... Podia ter salvo mais.
Desperdicei tanto dinheiro com futilidades. Não fazes ideia. Se soubesses...
Não fiz o suficiente. Este carro... Porque fiquei eu com ele? Alguém o teria
comprado. Teria salvo dez pessoas, mais dez pessoas. Este alfinete! Duas
pessoas! É de ouro. Podia ter salvo mais duas pessoas. Por isto... eu poderia
ter salvo mais pessoas... e não o fiz». Estamos condenados a uma dor assim?
Mas há finais felizes. Lembro-me dos meses que antecederam a partida do
poeta Eugénio de Andrade. Ele ficou internado longo tempo no Hospital de Santo
António, no Porto. Nessa altura, passei por lá algumas vezes a visitá-lo e só
me recordo de ouvi-lo pedir uma coisa: que lhe trouxessem duas maçãs. Não para
comer, obviamente, mas para ficar a olhá-las da cama, para sentir a cor, a
textura, o perfume, para distinguir a sua forma no silêncio, para amá-las como
se ama uma pintura de Cézanne. Acho que duas maçãs custam menos de dois
dólares, não é verdade?
José Tolentino Mendonça, Expresso, 4 de Janeiro de
2014.
Legenda: Maçãs de Paul Cézanne
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