terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?

VAI E VEM

I

É de todos sabido que
o 100 tanto desce como sobe
- e fiquemo-nos
pelo estreito declive que vai
da praça das Flores ao Príncipe Real.

Vi hoje um filme sobre isso
- português, embora não muito suave,
e avesso, como pôde, aos brandos
costumes da morte. Detive-me,pouco
depois, sob a frondosa árvore da noite.
À espera, claro,de não ver ninguém.

II

Lá em baixo, como é também
sabido (embora de alguns apenas),
fica a taberna da Dona Benilde.
Central da Praça das Flores;
se preferirem. Onde não encontrarão
uma coelha morta, os dedos sujos
de tabaco do senhor Jorge
ou o rasto ainda mais sujo da felicidade.
Mas podem facilmente encontrar-me,
junto ao relógio parado que fixei
a tarde inteira - enquanto o 100, coitado,
subia e descia o mais improvável dos destinos.

Razão tem sempre Benilde, ao dizer
por exemplo
que acredita mais em coisas
más do que em coisas boas.
Será, a vida, mais ou menos isso.
Mas João Vuvu, sentado onde já não está,
recusa-se a responder. Não há respostas,
ninguém lhe perguntou nada.

III

Posto isto, talvez fosse importante
distinguir
a coisa pública
do medíocre fervor das massas
(está para durar, o
broche democrático).
No entrementes, Dona Benilde acha
muito mal que duas raparigas
se beijem tão nitidamente à sombra
do jardim - se fossem homens,
acrescenta, estranharia menos.
Mas afinal (ó Pessoa) uma delas é rapaz
e o mundo volta a ser perfeito.

Quase tão perfeito como o olho azul
que não precisou de lâminas para dizer a morte.
Um riso que se apaga. Lentamente.

Manuel de Freitas em Poemas Com Cinema, Antologia organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queiroz, Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2010

Legenda: plano final de Vai e Vem
João César Monteiro fica a olhar por nós. 

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