quarta-feira, 5 de agosto de 2020

JUAN MARSÉ E O ROMANCE NEGRO


Há coincidências do arco da velha...

Quando escolhi alguns livros para me acompanharem nestas curtas férias juntei-lhes este do catalão Juan Marsé, “Essa Puta Tão Distinta”, que havia comprado mais ou menos por altura do seu lançamento (2017) e deixado em lista de espera até agora.

De Juan Marsé, embora ele tenha muitos livros traduzidos em Portugal, pouco ou nada sabia, mas o livro tinha-me despertado um misto de interesse literário e cinéfilo, devido a um curto resumo que algures tinha lido: na Barcelona dos anos 40 uma prostituta fora estrangulada com tiras de película na sala de projeção de um Cinema de bairro – o Cinema Delicias -, enquanto o público assistia à exibição de “Gilda” e, muitos anos mais tarde, em 1982, um escritor é contratado para escrever um guião cinematográfico baseado nesse fato verídico.

No preciso momento em que me sentei para iniciar a leitura do livro passei rapidamente os olhos pelos principais títulos do Público “on line” e deparei com a notícia da morte de Juan Marsé, dois dias antes, aos 87 anos de idade...

No obituário que escreveu sobre Marsé nesse dia 20 de Julho, José Riço Direitinho afirma que ele era um dos melhores “retratistas literários de uma Barcelona cinzenta” do pós-guerra e dos anos do franquismo.

De origem operária, escrevia, segundo Direitinho, com um olhar agudo sobre a classe operária, os vencidos, os desfavorecidos e os marginalizados, criando uma “Barcelona imaginária” da mesma maneira que Buenos Aires se havia tornado um “lugar imaginário” através dos livros de Borges.

“Escritor obrero” lhe chamavam em Espanha...

Juan Marsé começou a escrever aos 25 anos, em 1958, e pouco tempo depois, em 1960, mudou-se para Paris, certamente por motivos de liberdade de expressão e/ou de segurança pessoal, já que era muito próximo de alguns membros do Partido Comunista.

A memória da censura está, aliás, bem presente neste livro que me preparava para ler, uma vez que o personagem do escritor, embora já em 1982, em plena fase da chamada Transição, ainda se encontra bloqueado defronte de uma página em branco, à espera que as palavras certas lhe venham à cabeça:

«Por qualquer razão, quando evocava o passado, sentia o peso de uma castradora censura oficial que, paradoxalmente, já fora abolida, já não existia em 1982: aquela insidiosa obrigação de não chamar as coisas pelo nome. O que acontecia era que algumas palavras, demasiado tempo evitadas e silenciadas, como se ainda as afetasse a espoliação e o descrédito sofrido durante tantos anos, perdiam de súbito o seu referente aos meus próprios olhos e mudavam de significado, mascaravam o seu verdadeiro sentido e viravam-me insidiosamente as costas. Tinha a impressão de as extrair penosamente, uma após outra, do fundo de um poço escuro. As palavras estavam ali, no papel, mas permaneciam disfarçadas, olhando para outro lado e persistindo na falsidade. Nesses momentos, invadia-me a sensação de que as palavras de que necessitava, as precisas e pertinentes, as insubstituíveis, as únicas que me importavam, as que não me deixariam desarmado em frente da página em branco, ficavam no fundo do poço escuro, submetidas à censura e ao castigo.»

“Essa Puta Tão Distinta”, págs 30 e 31.

A citação foi longa mas evoca tristes tempos que também vivemos, já que por aqui as palavras também foram silenciadas durante demasiado tempo, embora muitos, hoje, pareçam empenhados em o esquecer e em o negar.

Mas, perguntar-se-ão vocês, que raio quererá este gajo com esta rábula de hoje...?

Não se escreve um texto destes só para registar uma simples coincidência...

E muito menos para, imbecil e pretensiosamente, se pretender homenagear um Autor cuja Obra manifestamente se desconhece...


E escritores a evocar os tempos da Censura, infelizmente há muitos...

Nada disso, portanto, garanto-vos eu...

Então o quê...???

Nada mais que uma sentida e singela homenagem cinéfila.

No referido obituário do Público de 20 de Julho José Roço Direitinho já nos tinha informado que durante os seus tempos de Paris Juan Marsé, entre outras atividades, traduzira argumentos cinematográficos, e o próprio Marsé terá reconhecido, numa entrevista, que a sua aprendizagem do ofício de narrar acontecera com o cinema, concluindo Direitinho que fora “a sua relação e o encanto com a Sétima Arte” que fizera com que sua escrita fosse sempre “bastante cinematográfica nas imagens que criava e nos diálogos assertivos”.

Que Juan Marsé é cinéfilo, e dos bons, percebe-se bem ao longo de todo o livro.

Há, até, uma personagem deliciosa – a sua mulher-a-dias Felisa – que, pelo facto de ter ao longo de muitos anos ajudado o seu pai numa lojeca dedicada à “memorabilia” sobre Cinema, sabia diálogos de filmes de cor e salteado e passa o livro a tentar fazer apostas com o seu patrão, a um “duro” cada uma...

São, também, desafios para nós, leitores, e confesso-vos que não os consegui identificar a todos...

Mas o que mais me encantou foi uma cena caída do céu não se sabe como...

O nosso escritor, o tal do livro que prepara o guião acerca do assassinato da prostituta, vai ao otorrino e na sala de espera encontra um casal de meia-idade, que já tinha encontrado anteriormente.

A mulher, Cloti, embirrava com o marido, Oriol, por ele estar de meias amarelas e não ter usado aquelas cinzentas mais bonitas que ela lhe tinha comprado recentemente...

O pobre homem defendia-se dizendo que ela estava a ver mal e que as meias eram cinzentas, e não amarelas...

Ela, é claro, insistia na dela, e a determinada altura acena-lhe com uma revista que estava a ler e diz-lhe que ela tem uma entrevista com aquele escritor de romance cinzento de que ele tanto gosta...

Ele responde-lhe que é romance negro, e não cinzento...

Ela insiste que sabe muito bem o que está a dizer e que o tal romance é, mesmo, cinzento, e não negro...

O marido enche-se de paciência e dispara-lhe à queima roupa:

-”Cloti, não te disse já centenas de vezes que o romance negro é o que melhor questiona os conflitos sociais, o que melhor explora a condição humana, o que melhor denuncia, de forma implacável, as injustiças e a corrupção da nossa sociedade…?”

“La estás tu outra vez com as tuas parvoíces, Oriol”, responde-lhe ela...

O nosso escritor não parece ter ficado muito convencido com esta tirada metida a martelo, e anota para si próprio:


(De momento, este diálogo não encaixa na estrutura do guião, parece muito distante do tema central. Mas, da maneira como estão as coisas… Quem sabe.)

Pura diversão...!

Puro pretexto para uma homenagem a qualquer coisa de que, certamente, se gosta muito.

Quem fala assim não é o pobre Oriol das meias amarelas, nem o escritor de 1982, do qual nunca se sabe o nome... 

É, certamente, o Escritor e Cinéfilo Juan Marsé.

Ora que conhece minimamente a minha biblioteca e a minha cinemateca privada sabe bem que eu não poderia estar mais de acordo com ele. É que, se substituirmos “romance negro” por “film noir” o sentido da frase em nada se altera.

Para além disto, que já não é pouco, que Juan Marsé é uma “Alma gémea” fica amplamente comprovado ao longo de todos o livro.

Também eu troco tudo por uma canção do Cole Porter...

Também eu, muitas vezes, troco todo o filme por um só plano de John Ford...

Também eu não sou muito tolerante com padres, mas abro exceção para o Padre Pietro, de “Roma, Cidade Aberta”, o “Nazarin” de Buñuel , o Padre Brown de Chesterton e o sacerdote irlandês, “irrascível e desmazelado”, de “A Filha de Ryan”...

Descansa em Paz Caro Juan, signifique lá isso o que significar...

Irei tratar de te conhecer melhor.

E um destes dias, a pensar em ti, irei ver pela enésima vez o Gilda, com a inesquecível Rita Hayworth no mais erótico “streap-tease” de luvas que alguma vez se viu no cinema...

PS:

A “puta distinta” a que o título do livro se refere não é o Cinema, essa amante cara que nos leva o dinheiro todo e nos obriga, quase todas as noites, a enganar a esposa com uma nova “mulher fatal”, nem é, sequer, a prostituta da história. É a memória: “O meu próximo romance será sobre as armadilhas e as ciladas que nos prega a memória, essa puta tão distinta”...

Texto de Luís Miguel Mira

1 comentário:

Luís Miguel Mira disse...

Viva Sam!
Há uma gralha no título e alguns problemas na parte da citação do "romance negro" que podem afetar a compreensão...
Obrigado!
M