Como vos contei no
último texto, Ernest Hemingway transformou em escritório uma velha cocheira
existente nas traseiras da sua casa, e era aí que trabalhava quando se
encontrava em Key West.
Junto-vos uma
fotografia desse escritório, visto do exterior.
O interior é este que
aqui vos mostro em três outras fotografias. O acesso é vedado ao visitante,
pelo que as fotografias têm de ser feitas da porta de entrada mas, entre outras
coisas, dá para ver a sua máquina de escrever “Royal”, da qual nunca se separava.
A mesa deveria ser um
mero apoio, porque Hemingway escrevia quase sempre de pé.
Por norma começava a
trabalhar às seis da manhã e ia de enfiada até ao meio-dia.
Se a escrita lhe
estivesse a sair bem poderia prolongar o trabalho até às duas da tarde, mas não
mais do que isso…
Após uma refeição, a
parte da tarde era destinada às pescarias, na companhia dos seus amigos locais.
Depois regressava a
casa e, se fosse caso disso, gostava de amanhar o peixe e de deitar as sobras
aos seus gatos.
A noite era reservada
ao Sloppy Joe’s Bar, cujo proprietário era Joe Russel, o piloto preferido de
Hemingway para o seu barco e, por isso, um dos que mais o acompanhavam nas
pescarias.
Durante os tempos da
“Lei Seca” Joe Russel manteve um “Speakeasy” em Front Street, e foi aí que
Hemingway o conheceu, quando lá ia comprar as suas garrafas de “whisky” às
escondidas. Entre ambos nasceu uma forte amizade, que duraria até à morte de
Russel por ataque cardíaco, em 1941, com apenas 53 anos.
No próprio dia em que
a “Proibição” terminou, a 5 de Dezembro de 1933, Joe Russel abriu um novo bar,
devidamente legalizado, no nº 428 de Greene Street, que começou por se chamar
“The Blind Pig”, e mais tarde “Silver Sleeper”, quando foram realizadas obras
de ampliação que incluíram a instalação de um palco.
Por insistência de
Hemingway o nome do bar acabou por ser mudado para “Sloppy Joe’s”, inspirado
num outro bar com o mesmo nome existente em Cuba.
Como o próprio nome
indica, o bar era meio abandalhado, com uma fauna característica que misturava
escritores como Hemingwau e Dos Passos, pintores como Waldo Pierce e Henry
Strater e velhos marinheiros, pescadores e gente humilde, mas muito, muito bem
disposta, segundo consta…
Bebia-se,
filosofava-se, evocavam-se epopeias gloriosas em mares longínquos, discutia-se
quem pescou o maior peixe, jogava-se, cantava-se e não raras vezes lá surgia
uma sempre bem recebida pequena zaragata, com alguns copos e cadeiras pelos
ares…
Todos os amigos
tinham alcunhas, e foi aqui que Hemingway ganhou a sua de “Papa”. A Joe pôs-lhe
a alcunha de “Josie Grunts”, talvez por estar sempre a resmungar...
Gente desta não
poderia escapar à sensibilidade de um escritor. Se Joe Russel foi,
assumidamente, a inspiração para o personagem de Freddy, o proprietário do bar
de “Ter e Não Ter”, outros tê-lo-ão sido também, muito provavelmente, como
aquele adorável velho marinheiro interpretado por Walter Brennan que no filme
do Hawks anda sempre a perguntar às pessoas se nunca foram mordidas por uma
abelha morta...
Hemingway também nem
sempre saia muito a direito dessas noitadas…
Uma noite levou
consigo um urinol do bar e ofereceu-o à sua mulher, Pauline, como prova do seu
grande amor por ela. Pauline não terá achado muita graça mas manteve o urinol
no jardim, embora tendo-o transformado numa fonte para os seus gatos. Ainda lá
está...
O “Sloppy Joe’s Bar”
manteve-se apenas quatro anos na Greene Street.
Em 1937 o
proprietário do edifício pediu um aumento da renda semanal, passando-a de 3
para 4 dólares.
Joe Russel entendeu
que um aumento de 25% era demasiado e mudou o seu bar umas poucas centenas de
metros, para a esquina da Duval Street - hoje a principal rua da cidade – com a
Green Street. Pagou 2.500 dólares pelas novas instalações, e nunca mais se
preocupou com senhorios…
Mas com a passagem
dos anos Key West ganhara fama e começava a atrair novos residentes e
visitantes. Chegavam escritores como Tennessee Williams e Truman Capote e
políticos como Truman e Eisenhower, e a cidade ganhava outra respeitabilidade.
O novo bar do Joe
dificilmente poderia manter as características do anterior e ser tão
“desleixado” como ele era, tanto mais que o espaço era maior e deixara de ser
tudo ao molhe… Havia uma sala própria para jogo e até uma nova sala de bilhar.
Russel morreu em
1941, como vos disse, e a gestão do bar foi inicialmente assumida pelo seu
filho, passando, depois, por diversas mãos até ser vendido em 1978 aos atuais
proprietários.
Hoje o “Sloppy Joe’s
Bar” está completamente descaraterizado e é uma instituição turística de Key
West, com a confusão e a algazarra habituais neste tipo de bares essencialmente
turísticos, como poderão perceber através da fotografia que vos envio. Mais do
que isso, começa a ser uma verdadeira instituição da Florida, já que dois
outros bares com o mesmo nome foram abertos em Treasure Island e em Daytona
Beach.
Está aberto 365 dias
por ano das 9h00 às 04H00, tem três sessões diárias de música ao vivo, vende
todo o tipo de “merchandise” acerca de Hemingway que possam imaginar e todos os
anos organiza um concurso para eleger o seu sósia mais perfeito. Estão a ver o
estilo…
Para mim estava fora
de questão homenagear Hemingway num lugar destes...
Dei comigo a pensar
que se Russel mudou o seu bar para o 201 da Duval Street em 1937, altura em que
Hemingway andaria por terras de Espanha, e se a partir dessa altura este andou
sempre a saltar entre Espanha e Key West, certamente que não teve oportunidade
de visitar essas novas instalações com a frequência com que frequentara as
anteriores.
No lugar onde
inicialmente se encontrava o velho “Sloppy Joe’s Bar”, o mais castiço e o mais
frequentado por Hemingway, continuou a existir um bar que desde 1958, data em
que foi comprado por um capitão de pesqueiro chamado Tony Torracino, se passou
a chamar “Captain Tony’s Saloon”.
Para evocar a memória
do autor de “Adeus às Armas” faria muito mais sentido ir beber um copo a este
bar do que ir ao barulhento e incaracterístico “Sloppy Joe’s”.
Foi o que decidi
fazer, tanto mais que se diz ser este o estabelecimento de bebidas mais antigo
da Florida, já que terá sido aberto em 1852.
Mas a sala é muito
escura e fotografias de jeito só sentado ao balcão, pelo que vos poupo terem de
ver a minha cara...
Tal como tantos
outros sítios que já vos mostrei, o “Sloppy Joe’s Bar” integra também, desde
2006, o “National Register of Historical Places”.
PS:
As informações acerca
da história do “Sloppy Joe’s Bar” foram obtidas no seu próprio “site”, que por
sua vez as recolheu do livro “Sloppy Joe’s – The Tradition Continues”, da
autoria de Carol Shauhnessy, a quem roubei a expressão “famous and infamous”
do título deste texto.
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira..
1 comentário:
Uma maravilha estes textos sobre escritores!
Obrigado Luís Mira.
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