terça-feira, 29 de setembro de 2020

TIRADAS

Como sabem, W.A. é músico nos seus tempos livres e toca, principalmente, clarinete.

No que respeita a atuações públicas, tudo começou quando se juntou a um grupo de amigos às segundas-feiras à noite, no Michael's Pub, de Nova Iorque. Desde 1996 a banda passou a tocar, regularmente, no Carlyle Hotel, também em Manhattan.

Entretanto a banda ganhou o nome de "New Orleans Jazz Band" e, como ele refere, deu várias vezes a volta ao Mundo, tendo passado em duas ocasiões pelo CCB de Lisboa, a última das quais muito recentemente, a 4 de Julho de 2017.

Não assisti a nenhum desses concertos. Os preços pareceram-me exorbitantes para uma banda de amadores...

Em 1996 a célebre realizadora americana Barbara Kopple acompanhou a banda numa digressão pela Europa, daí resultando o documentário "Wild Man Blues", lançado no ano seguinte.

Esta "tirada" é, pois, acerca de W.A. enquanto músico.

"O meu amigo Jerry comprou um gravador e apresentou-mo com orgulho.

"Que música é essa?", perguntei

"É um concerto de jazz que gravei", disse ele, da "rádio Ted Husing's Bandstand".

"É excelente", disse, atirando para o lado os meus livros da escola, na direção do caixote do lixo.

"Um concerto em França".

"Quem é esse?"

"Sidney Bechet."

"Quem é esse?"

"Um saxofonista soprano de Nova Orleães."

Foi a primeira vez que ouvi jazz de Nova Orleães. Porque me afetou tão profundamente nunca saberei. Ali estava eu, um judeu de Brooklyn, que nunca tinha saído de Nova Iorque, com o tipo de gosto cosmopolita, um grande apreço por Gershwin, Porter, Kern, compositores populares muito sofisticados, e ali estavam estes afro-americanos do sul profundo, que nada tinham em comum comigo e, no entanto, rapidamente se tornaram uma obsessão; em breve eu era aspirante a humorista, aspirante a mágico, aspirante a jogador de beisebol e aspirante a músico de jazz afro-americano. Comprei um saxofone soprano, aprendi a tocá-lo; comprei um clarinete e aprendi a tocá-lo. Comprei uma vitrola. Isso fui capaz de tocar sem lições"

(pág. 59)

"Ouvíamos todo o tipo de jazz, mas os nossos preferidos eram os discos antigos de Nova Orleães. Bunk Johnson, Jelly Roll Morton, Louis Armstrong e, claro, Sidney Bechet, que eu adorava e queria imitar enquanto tocava (e se isto não o fizer rir, nada fará). Sentava-me no meu quarto sozinho, a tocar, enquanto ouvia os discos de Bechet e, mais tarde, de George Lewis. Este foi outro ídolo meu; com ele e John Dodds, mais um génio do clarinete, sentia que me tinha, por fim, encontrado. O prazer era tão intenso que decidi dedicar a minha vida ao jazz. Mal sabia eu que Bechet, Armstrong, George Lewis, Johnny Dodds, Jelly Roll Morton e Jimmie Noone eram génios musicais. o idioma deles era primitivo, mas, nos parâmetros do jazz de Nova Orleães, tinham dentro deles algo verdadeiramente mágico, que jorrava a cada nota que tocavam. Eu, bronco ingénuo que era, não compreendia que não tinha essa genialidade, que estava destinado, apesar de todos o meu entusiasmo e amor pela música, a não ser mais do que uma nulidade musical, que seria escutada e tolerada com base numa carreira cinematográfica, e não por algo que valesse alguma coisa no que ao jazz diz respeito."

(pág. 59 e 60)

"Mas praticava, e ainda pratico. Toco todos os dias e com tal dedicação que, para ter a certeza de que não falho um dia, já toquei em praias geladas, em igrejas enquanto a minha equipa de filmagens se instalava, em quartos de hotel depois do trabalho, enfiando-me na cama e tapando-me com as cobertas para não acordar os outros hóspedes. Contudo, por muito que ouça música, que leia as histórias estimulantes das vidas dos músicos e que sopre, sopre, sopre, com diferentes bocais e palhetas, sempre em busca daquela combinação que me irá fazer soar melhor, continuo uma nulidade. Continuo a ser um jogador de ténis de fim de semana no meio de Federer e Nadal. Lamento dizê-lo, não o tenho em mim: o ouvido, o tom, o ritmo, o sentimento. No entanto, já toquei em público em clubes e salas de concerto, em casas de ópera por toda a Europa, em auditórios cheios nos Estados Unidos. Já toquei em paradas de Nova Orleães e bares da cidade, no Jazz Heritage Festival e no Preservation Hall, tudo porque a minha carreira cinematográfica o permite. Há vários anos, Dotson Rader, um homem espirituoso, perguntou-me durante um jantar: "Não tens vergonha?".

Entre o amor pela música e os meus limites enquanto músico, se quero tocar não me posso dar ao luxo de ter vergonha."

(pág. 60) 

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

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