terça-feira, 15 de setembro de 2020

MANHÃ DE AGOSTO


Nesta manhã de Agosto
encontrei o papel onde tinha escrito
a idade em que Blaise Cendrars
perdeu a mão direita
e fiquei a sentir a dor
que me atormentava. Não tomei aspirina
nem esqueci a tua carta
de ontem, aquele momento
em que dizes eu querer
arrastar-te comigo «para esse universo
onde a vida é trocada por palavras».

Tenho lido os poetas
da minha geração. Conheço
o primeiro poema, aquele que inaugurou
a vida, também em mim.
Cansada de ir à praia, à piscina,
procuro livros, uma emoção linguística,
o verso desconhecido.
Guardei uma frase de Musil, na caixa
onde tenho os selos, um minúsculo relógio
que decidi não usar.

Não posso viver sem a música de Schubert,
ou aquela peça de Brahms – tudo isto
são palavras, a vida passa-se lá fora,
o Inverno há-de vir e não poderei
totalmente fugir ao desconforto.

Falava-se de As Túlipas
e começo a entender. Esta música,
estas palavras, a morte na dobra do lençol,
meu frio corpo na penumbra, no paraíso inicial
da anestesia. Perdida a razão no inferno
da dor, a cabeça irreal, meu poema
esquecido na margem do sono. A morfina,
as enfermeiras, tudo o que pudesse
polir o tormento.


E hoje acabei
por tomar aspirina, gastar o rosto,
permanecer em casa.


Legenda: capa de «Le Voyage Magnifique» de Franz Schubert imterepretado por Maria João Pires

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