quinta-feira, 17 de setembro de 2020

TIRADAS


De regresso aos textos, recomeçarei de mansinho, para não vos sobrecarregar.

TIRADAS foi o título que, em crise de imaginação, escolhi para vos enviar alguns trechos da autobiografia de Woody Allen recentemente publicada em Portugal, com a qual me entretive durante as férias.

A escolha é minha e, como é natural, altamente subjetiva...

Atenção que não estou deliberadamente a escolher trechos que vos levem a rir às gargalhadas, mas sim alguns que vos ajudarão a conhecer o personagem ou, melhor dizendo, conhecê-lo da maneira como, pelos vistos, ele quer ser conhecido nos dias de hoje...

Mas sigam o meu conselho e não acreditem em tudo o que ele vos diz...

Colaboração de Luís Miguel Mira

Brinco com os meus pais neste relato da minha vida, mas cada um deles partilhou comigo conhecimentos que me haviam de servir durante décadas. Do meu pai: Quando compras o jornal numa banca, nunca tires o de cima. Da minha mãe: a etiqueta fica sempre atrás.
(pág. 28)

Já agora, é impressionante a quantidade de vezes em que me descrevem como um "intelectual". Esta é uma noção tão falsa como o monstro do Lago Ness, dado que não tenho na cabeça nem um só neurónio intelectual. Iletrado e desinteressante em tudo o que diz respeito à educação, cresci sendo o protótipo do preguiçoso que se senta à frente da televisão, de cerveja na mão, com um jogo de futebol aos berros, a página central da Playboy presa à parede com fita cola, um bárbaro que exibe casacos de tweed com remendos nos cotovelos à la professor de Oxford. Não tenho conhecimentos profundos, pensamentos elevados, nem tão pouco compreendo a maioria dos poemas que não comecem por "As rosas são vermelhas, as violetas azuis". O que tenho, contudo, é um par de óculos de aros pretos, e argumento que a utilização destes óculos, combinada com a capacidade de retirar os adequados pedacinhos de fontes eruditas demasiado profundos para que eu os consiga compreender, mas que podem ser utilizados no meu trabalho para transmitir a impressão enganadora de saber mais do que sei, mantém este conto de fadas vivo
(pág. 23)

De qualquer maneira, não comecei a ler senão quando estava no final do secundário e as minhas hormonas tinham verdadeiramente acelerado, e comecei a aperceber-me daquelas jovens de longos cabelos lisos, que não usavam batom, tinham pouca maquilhagem, vestiam golas altas pretas e saias com collans escuros, e transportavam grandes malas de cabedal onde guardavam os exemplares de "A Metamorfose", que tinham coberto de notas pessoais à margem, onde diziam coisas como "Sim, muito verdadeiro!" ou "ver Kierkegard". Por uma singularidade carnal irracional, foram estas que captaram o meu coração, e quando lhes telefonava para irmos sair e lhes perguntava se queriam ir ao cinema ou ver um jogo de beisebol, e elas queriam antes ouvir Segovia ou assistir à peça do Ionesco na Broadway, havia uma pausa desajeitada e longa antes de eu lhes responder "Já voltamos a falar", correndo apressadamente para tentar descobrir quem eram Segovia e Ionesco. Escusado será dizer que estas mulheres não aguardavam ansiosamente pelo próximo volume do "Capitão América" ou mesmo o próximo Mickey Spillane, o único poeta que eu era capaz de citar.
(pág. 17)

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