quinta-feira, 24 de setembro de 2020

TIRADAS


  As "Tiradas" de hoje serão dedicadas ao Cinema durante a meninice e a adolescência de W.A., bem como aos seus gostos pessoais.

 Sim, eu sei que são muito extensas, mas pareceu-me mais coerente juntar tudo o que tem a ver com o mesmo tema, em vez de vos enviar aos bochechos. E ainda deixei muita coisa de fora...

 Embora 18 anos mais novo do que ele, eu ainda fui a tempo de sentir um pouco da magia que ele aqui evoca, embora não tivesse tido a sorte de ter uma prima mais velha que me levasse todas as semanas ao cinema ver uma sessão dupla...

 Nos finais dos anos 50, ou seja, aí pelos meus 6/7 anos, já havia televisão em Portugal, mas só a preto e branco.

 Nada que se comparasse, portanto, com o espanto daquele ecrã gigante, com a sedução do "Technicolor" e da música e com todo aquele ritual pelo qual passávamos (o "foyer", a subida das escadas, a condução ao nosso lugar, o "Programa" para recordação, ...) até soarem as badaladas e o filme começar. E ainda me lembro que a primeira vez que fui ao Cinema foi para ver "A Bela Adormecida" no Monumental com a minha já falecida prima Lena, e dei um valente bate-cu porque a malvada da cadeira fugiu debaixo do meu rabo sem eu dar por isso...!

 Eram as noites que sonhávamos até a hora chegar, e as outras que levávamos a pensar quando é que teríamos a sorte de lá voltar. 

 As minhas filhas já nasceram com a televisão a cores, numa altura em que o Cinema começava a estar banalizado nas televisões e já havia VHS para se ver em casa.  E a ida ao Cinema era um ritual quase semanal...

 E os meus netos então, nem se fala... 

 Quanto a W.A., se, conhecendo-se a sua Obra, não se estranha muito alguns dos gostos e desgostos manifestados, já se estranha - e muito...! - que o cinéfilo Allen não tenha tido sequer a mínima "curiosidade cinéfila" para dedicar meia-dúzia de horas da sua vida a ver algumas das obras-primas que se gaba de não ter visto, tanto mais que as mesmas devem ter passado centenas de vezes nas televisões americanas...

 Mas se ele o diz...   

 Deixo-vos, então, com este nostálgico relato de outros tempos...


"Eu via todos os filmes que Hollywood lançava. Todas as grandes produções, todos os filmes de série B. Eu sabia quem entrava nos filmes, reconhecia-os, os intervenientes mais desconhecidos, os atores secundários, reconhecia as músicas, pois conhecia todas as músicas mais populares, dado que Rita (Nota: prima 5 anos mais velha que o acompanhava ao Cinema) e eu nos sentávamos e ouvíamos rádio juntos, incessantemente. O Make Believe Ballroom, Your Hit Parade. Nesses dias, a rádio tocava desde o minuto em que acordávamos até aquele em que íamos dormir. Música, notícias e mais música.

A música pop da altura era Cole Porter, Rodgers and Hart, Jerome Kern, George Gershwin, Benny Goodman, Billie Holiday, Artie Shaw, Tommy Dorsey. Assim, aqui estava eu, inundado com música e filmes lindíssimos. Primeiro, uma sessão dupla todas as semanas, depois á medida que os anos foram passando, ia cada vez mais. Era tão entusiasmante entrar no Mildwood ao sábado de manhã, enquanto as luzes ainda estavam acesas e a pequena multidão comprava os seus doces, e avançava em fila e ia tocando um disco pop para impedir que quem se ia sentando se amotinasse até as luzes descerem. Harry James - "I'll Get By". As luzes nos esconsos eram vermelhas. Por fim, as luzes apagavam-se, as cortinas abriam-se e o ecrã prateado iluminava-se com um logotipo que fazia salivar o coração, se é que posso misturar as metáforas, com uma antecipação pavloviana. Vi-os a todos, cada comédia, cada filme cowboys, cada história de amor, cada filme de piratas, cada filme de guerra."

(págs. 25 e 26)

"Os meus filmes preferidos, em jovem, eram aqueles que apelidei de "comédias de champanhe". Adorava histórias que se passavam nas penthouse onde o elevador se abria para o interior do apartamento e as rolhas saltavam, onde homens elegantes pronunciavam diálogos esperituosos e encantavam mulheres belas, percorriam as casas com as mesmas roupas que agora alguém poderia utilizar num casamento no Palácio de Buckingham. 

Estes apartamentos eram grandes, normalmente duplexes, com muito espaço branco. Ao entrar, a pessoa ou o seu convidado dirigia-se, invariavelmente, para um bar pequeno e acessível onde eram servidas bebidas decantadas. Na altura todos bebiam e ninguém vomitava. E ninguém tinha cancro e a penthouse não tinha fugas e, quando o telefone tocava a meio da noite, as pessoas que viviam nas alturas sobre Park Avenue ou Fifth Avenue não tinham, como a minha mãe, de sair da cama e bater com os joelhos no escuro em busca do instrumento negro para ouvir que um parente talvez tivesse acabado de morrer. Não. Hepburn, ou Tracy, ou Cary Grant, ou Myrna Loy estendiam a mão para a mesinha de cabeceira a poucos centímetros de onde dormiam, e o telefone era normalmente branco e as notícias não andavam em torno de células metastáticas e tromboses coronárias provocadas por anos a ingerir carnes mortíferas, mas de enigmas de mais provável resolução como "O quê...? Como assim não estarmos legalmente casados!?".

(págs. 26 e 27)

 "E assim, graças à minha prima Rita, fui apresentado ao cinema, às estrelas de cinema, à Hollywood da moralidade patriótica e aos seus filmes milagrosos; e embora ignorasse tudo o que todos me tentaram ensinar, dos meus pais aos meus professores de espanhol, quando já tinha dois anos de aprendizagem, Hollywood pegou. Modern Screen, Photoplay. Bogart, Cagney, Edward G. Robinson, Rita Hayworth - o seu mundo de celuloide, foi isso que aprendi. O maior do que a vida, o superficial, o falsamente glamoroso, mas não me arrependo de um fotograma que seja. Quando me perguntam que personagem dos meus filmes se parece mais comigo no ecrã, basta olhar para a Cecília em "A Rosa Púrpura do Cairo"."

(pág. 31)

 No que a filmes diz respeito, nunca vi "Charlot nas Trincheiras ou "O Circo" de Chaplin, nem "O Navegante" de Buster Keaton. Nunca vi qualquer versão de "Assim Nasce Uma Estrela". Apesar de todos os sábados passados no Midwood Theatre, nunca vi "O Vale Era Verde" ou "O Monte dos Vendavais" ou "Camille" ou "A Estranha Passageira" ou "Ben-Hur" ou muitos outros. "Vidas Nocturnas", "A Casa Assombrada","A Noiva de Frankenstein", nunca os vi. Não estou a menosprezar esses trabalhos; isto é sobre a minha ignorância e o porquê de os óculos não tornarem uma pessoa particularmente literata, muito menos intelectual. E estas são só pequenas amostras dos buracos da minha erudição. Até à data, nunca vi "Doido com Juízo ou "Peço a Palavra"."

(pág. 66)

 "Prefiro Chaplin a Keaton. Isto é algo que não cai bem à maior parte dos críticos e alunos de cinema, mas acho-o mais divertido, embora Keaton fosse melhor realizador.

Estou apenas a realçar alguns ícones que, surpreendentemente, não significaram tanto para mim quanto para o público em geral. Como "Quanto Mais Quente Melhor" e "Duas Feras" - para mim nenhum deles era divertido. Também não gostei de "Do Céu Caiu Uma Estrela". A bem da verdade, adoraria estrangular o belo anjo da guarda. "O Grande Amor da Minha Vida" nunca me convenceu. Adorei Hitchcock, mas não suporto "Vertigo". Sou louco por Lubitsch, mas nunca achei divertido "Ser Ou Não Ser. "Ladrão de Casaca", por outro lado, acho o máximo, um ovo Fabergé

Adoro musicais: "Serenata à Chuva", "Gigi", "Não há Como a Nossa Casa", "A Roda da Fortuna", "My Fair Lady". Nunca gostei de "Um Americano em Paris"

Por outro lado, nunca achei "O Grande Ditador" ou "O Barba Azul" minimamente divertidos. Não considero, de maneira nenhuma, que quando Chaplin faz saltitar pelo ar aquele balão com a forma de um globo seja um exemplo de genialidade cómica. Mas quem é que quer saber o que eu acho?".

(págs. 67 e 68)


Woody Allen em A Propósito de Nada

 Colaboração de Luís Miguel Mira