Eu não me importo nada de andar a saltitar de um lado para o outro, mas parece-me ser mais interessante para quem tem a paciência de me ler que os textos tenham alguma sequência lógica entre si…
Voltemos a Hemingway, portanto…
E passemos a Cuba.
Quando vos falei da casa de Key West disse-vos que, após quatro viagens e um total de oito meses passados em Espanha durante o período da Guerra Civil, Hemingway regressara aos Estados Unidos em inícios de 1939, tendo-se instalado, seguidamente, em Cuba, onde prosseguiu a escrita de “Por Quem os Sinos Dobram”.
A jornalista Martha Gellhorn, com quem Hemingway iniciara uma relação afetiva em Espanha, juntar-se-ia a ele uns tempos mais tarde, e casaram-se em Novembro de 1940, no Wyoming, após ter sido decretado o divórcio de Pauline Pfeiffer.
Em Cuba Hemingway viveu no Hotel Ambos Mundos, na Habana vieja , que aqui vos mostro.
Neste hotel
aconteceu-me uma coisa perfeitamente inesperada.
Estava eu no bar do piso térreo, dou uma olhadela para um jogo de futebol que passava na televisão e começo a ver jogadores conhecidos. Era um jogo do Sporting em casa do CSKA para uma pré-eliminatória da Liga dos Campeões, coisa impensável de se ver em Cuba…!
Como não fora ao Ambos Mundos para ver jogos do Sporting, subi para tomar uma cerveja no terraço e ver a bela vista sobre Havana que de lá se vislumbra. Quando subi ganhava o Sporting 1-0; quando voltei a descer perdia 2-1… Parece que foi roubado e, desta vez, a sério…
Mas adiante, que não vim aqui falar em desgraças...
Hemingway gostava de se alojar neste hotel porque estava próximo do porto onde o seu barco, “Pilar”, se encontrava ancorado, e a poucas centenas de metros, também, dos bares que mais frequentava em Havana, sobretudo o Floridita, que ficava no outro extremo da mesma rua, porque o Bodeguita del Medio ainda não existia na altura.
Mas Martha Gellhorn não se sentia bem a viver em quartos de hotel e não descansou enquanto não encontrou uma residência para o casal.
Foi ela quem descobriu a Finca Vigia, num lugarejo chamado San Francisco de Paula, a 24 km de Havana, uma grande casa construída em 1886 num terreno vastíssimo.
A primeira vez que ouvi falar desta Finca foi em 1974 ou 75, num documentário integrado num ciclo de Cinema Cubano que o Lauro António organizou no Apolo 70. O programa do ciclo ainda deve andar por aí, mas vá lá saber-se onde...
Inicialmente alugada, a Finca seria, mais tarde, comprada por Hemingway por 12.500 dólares, após ter sido consumado o seu divórcio.
Mas Gellhorn não iria passar muito tempo em Cuba.
Primeiro porque, depois de uma primeira experiência bem sucedida em Espanha, a sua carreira de correspondente de guerra ganhou asas e as ausências em trabalho eram cada vez mais frequentes, levando Hemingway a queixar-se de que não precisava de uma mulher nas páginas dos jornais de grande tiragem, mas sim na sua cama…
Por vezes Hemingway acompanhava a mulher nas suas viagens de trabalho, como numa célebre viagem à China em 1941, em pleno conflito sino-japonês. Mas na maior parte das vezes ela ia sozinha à sua vida.
Depois porque a Martha não agradava muito o tipo de vida que Hemingway levava em Cuba e não perdia uma boa oportunidade para arejar.
Na primeira das cartas já escritas na Finca que constam desta coletânea de “cartas escolhidas” que vos mostro, datada de 11 de Fevereiro de 1940, Ernest escreve ao seu célebre editor Maxwell Perkins:
“We won again at the pelota last night and stayed up till three a.m. So today will have to take Martha to the movies as a present for being drunk Saturday night, I guess. Started out on absinthe, drank a bottle of good red wine with dinner, shifted to vodka in town before the pelota game and then battened it down with whiskys and soda until 3 a.m.”
E, finalmente, porque, com todos estes problemas, o casal também não iria ficar junto muito tempo
Na verdade, eram duas personalidades muito fortes, que frequentemente batiam de frente.
Às vezes por ninharias, como quando Martha terá mandado castrar todos os gatos selvagens que aparecessem na quinta e Hemingway interpretou isso como uma ofensa simbólica em relação a si...
Martha era segura de si e afirmaria mais tarde, que não queria ficar para a posteridade como uma simples nota de rodapé na biografia de Hemingway…
Este, por seu lado, parecia sentir cada vez mais ciúmes do sucesso jornalístico da sua mulher.
E o copo transbordou quando, alegadamente, Hemingway conseguiu desviar para si uma credencial da “Collier’s” para acompanhar o desenrolar da II Grande Guerra em França, a qual, em princípio, estaria destinada à sua mulher.
Gellhorn não se conformou e conseguiu partir para a Europa, disfarçada no interior de um navio que transportava enfermeiras de guerra e várias toneladas de explosivos.
Finalmente, não deixaram Hemingway desembarcar porque, como escritor, foi considerado um ativo demasiado importante para correr riscos de morte, e Martha pôde orgulhar-se de ter sido a única correspondente a desembarcar na Normandia e a cobrir esse histórico evento.
Hemingway instalou-se em Londres, onde reencontrou Mary Welsh, uma jornalista da revista “Time” que já havia conhecido em Paris e com quem iniciou uma relação.
E foi em Londres que Gellhorn o informou que estaria tudo acabado entre eles. O divórcio foi decretado em finais de 1945 e em Março de 1946 Hamingway casar-se-ia, em Cuba, com Welsh.
Scott Fitzgerald parecia ter razão… Uma mulher para cada livro…
Mas Mary Welsh seria mulher para muitos livros e foi a quarta e última mulher de Ernest.
Gellhorn não mais voltaria à Fica Vigia e iria voar sozinha, prosseguindo uma carreira de jornalista que a iria transformar num dos mais célebres correspondente de guerra de todos os tempos.
Quanto a Hemingway, iria passar uma parte do seu tempo em Cuba até abandonar a ilha, em Julho de 1960.
Mas esta presença estava longe de ser constante porque, para além das permanentes viagens que fazia pelo Mundo, a determinada altura Hemingway criou o hábito de passar o Verão nas montanhas de SunValley, no Idaho, e os meses de Inverno em Cuba.
Literariamente e com
exceção de “O Velho e o Mar”, publicado em 1952, Cuba não iria ser muito
produtiva para Hemingway.
Antes havia publicado “Na Outra Margem Entre as Árvores”, obra de que gostava muito mas que fora mal recebida pela crítica e pelo público.
Mas vingara-se, porque “O Velho e o Mar” deu-lhe um Pulitzer e o Nobel chegaria, dois anos depois.
Em contrapartida, aventura não lhe terá faltado.
Por esta altura as grandes companhias de Hemingway, em Cuba, não eram intelectuais, mas boémios, desportistas, sedutores e jogadores. Para além da gente do mar, de cuja presença sempre necessitou.
Com o seu barco, “Pilar”, não se limitava às pescarias e patrulhava, de noite, as águas do Golfo, à procura de submarinos alemães e parece que também chegou a criar uma rede privada de investigação, chamada “Crook Factory”, que espiava simpatizantes nazis.
Tanta generosidade junta alertou Edgar Hoover, que mandou que lhe fosse aberto um “dossier” por suspeita de ligações soviéticas.
Ou seja, enquanto espiava em favor da América, era espiado por ela… Típico de Mr. Hoover!
Mais tarde, já na segunda metade dos anos 50, também foi espiado pelo FBI por suspeita de colaboração com grupos de rebeldes anti-Batista, através do fornecimento de armas e de dinheiro.
Os últimos anos de Hemingway foram penosos, com sequelas de dois graves acidentes de aviação ocorridos em África um após o outro, várias doenças, depressões e sucessivos internamentos hospitalares com terapia de eletrochoques .
Como é sabido, não terá aguentado ver-se muito mais tempo nesse estado e suicidou-se com um tiro na garganta em 2 de Julho de 1961, na sua quinta de Idaho, com apenas 61 anos de idade.
Durante alguns anos a família esconderia o suicídio, afirmando que se tratara de um acidente, mas mais tarde assumiu a verdade.
Martha Gellhorn, que passaria os seus últimos anos de vida praticamente cega e a padecer de um cancro nos ovários, suicidar-se-ia, também, em 15 de Fevereiro de 1998, em Londres, com 89 anos
Mary Welsh não se suicidou e viveu até aos 78 anos.
Hoje a Finca Vigia é um Museu Nacional, propriedade do Estado Cubano.
Mas a história desta passagem de propriedade para o Estado também é interessante.
Cuba diz que se tratou de uma doação de Hemingway, mas parece não ter sido bem assim...
Hemingway nutria simpatia por Fidel Castro e parece que a simpatia era mútua.
Mas, não obstante existirem várias fotografias de Hemingway em companhia de Fidel, parece que só se encontraram uma única vez e por pouco tempo, em Maio de 1960, por ocasião de um torneio de pesca ganho pelo Comandante, que dava provas de ser, também, um excelente pescador. Todas as fotografias existentes terão sido tiradas nessa ocasião.
Apesar dessa aparente boa relação, à cautela e temendo que os bens de cidadãos estrangeiros residentes em Cuba viessem a ser expropriados pelo novo Governo, Hemingway depositou num cofre de um banco os seus bens mais valiosos, que incluíam, para além de alguns objetos e bens pessoais, os manuscritos dos livros em que estava a trabalhar (“Paris é Uma Festa”, “Ilhas na Corrente” e “O Jardim de Éden”, que seriam todos editados postumamente) e os seus quadros de maior valor e/ou estima pessoal.
Na última das cartas escritas em Cuba que constam da coletânea que vos mostrei, Hemingway escreveu a Charles Scribner Jr a 6 de Julho de 1960, menos de três semanas antes de partir de vez:
“We had planned to be leaving here in a couple of weeks. Very hot now and the trades are not blowing and it rains heavely each afternoon. The big fish have not come yet but are over-due and I would like to pull on a couple of big ones before I leave.”
Não sei se os chegou a pescar, ou não, já que deixaria Cuba a 25 de Julho de 1960, para não mais voltar.
Após a falhada invasão da Baía dos Porcos, em Abril de 1961, os receios de Hemingway confirmar- -se-iam e os bens de cidadãos americanos foram de imediato confiscados, incluindo a Finca Vigia, todo o seu recheio e tudo o que se encontrava guardado em bancos.
O que mais tarde se passou terá sido uma mera operação diplomática, parece que sob a égide do próprio Presidente Kennedy, que transformou uma sempre desagradável expropriação em “doação”, mediante troca por tudo aquilo que havia sido depositado por Hemingway no referido banco.
Como poderão ver pelas fotografias que vos mostro, a Finca Vigia tem tudo o que é habitual ver-se nas casas de Hemingway: troféus de caça, posters de corridas de touros, fotografias, centenas de livros…
Os mais importantes quadros e peças de decoração terão saído para os Estados Unidos, como vos referi.
Tal como poderão ver, o “Pilar”, a amada embarcação que Hemingway possuía desde os tempos de Key West também lá foi colocado, no espaço adjacente à piscina.
A torre mais alta é o espaço onde Hemingway se recolhia para escrever e podem ver uma fotografia desse escritório.
E, por hoje, daqui já chega.
No próximo texto daremos um saltinho a Cojimar, que fica aqui tão perto…
PS:
Que saiba ou que me lembre, existem dois filmes relativamente recentes que abordam a vida de Hemingway em Cuba.
Um é “Hemingway & Gellhorn”, que se debruça sobre a vida do casal e cuja referência a Cuba é muito ligeira. Com Nicole Kidman no papel de Martha Gellhorn e Clive Owen no de Hemingway, o filme é uma muita cuidada produção da HBO e foi realizado em 2012 por Philip Kaufman. É uma obra bastante interessante e, tanto quanto consigo perceber, muito fiel aos factos retratados.
O outro, “Papa – Hemingway in Cuba”, que Bob Yari realizou em 2015, com Adrian Sparks no papel de um desgastado e alcoolizado Hemingway, é mais banal e centra-se nos anos de 1957 e 1958, em que ele terá colaborado com a guerrilha e sido espiado pelo FBI. O único verdadeiro interesse que me parece ter é ter sido o primeiro filme de Hollywood autorizado a ser rodado em Cuba desde 1959.
Como não sou historiador de Literatura, para escrever acerca de Hemingway andei à pesca, tal como ele, puxando uma linha aqui e outra acolá.
Para além da “Net”, estes dois filmes proporcionaram-me informação útil, a qual seria confirmada num muito recente documentário transmitido pela SIC e integrado na série “Grandes Romances do Séc. XX”.
Texto e fotografias de Luiís Miguel Mira
Sem comentários:
Enviar um comentário