Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
O QU’É QUE VAI NO
PIOLHO?
Jorge Silva Melo no seu Século Passado:
Mas vê-se sempre O Vale era Verde, de maneira diferente porque de todas as vezes se chora de maneira diferente. Já ao ver este filme, chorei infâncias perdidas, quando mais para aí me dá o sentimento; ou a morte dos pais; ou a miséria da mina, ventre infernal do capitalismo; ou a honra dos trabalhadores; ou a coragem das mães; ou as refeições em silêncio; ou o casamento da irmã; ou as longas doenças da infância com os primeiros romances lidos na cama; ou a chegada da Primavera, ou o cheiro a sabão azul e branco, o acreditar que “um homem não chora”, o acreditar no silêncio dos homens e na determinação das mulheres, na honra, no valor do trabalho, no fluir inexorável da vida, na impossibilidade do regresso, na consciência da luta. E também nos aventais brancos, nas grandes almofadas, no banho na celha, na água a ferver...
Digo eu, agora: também a lindíssima Maureen O’Hara, nos seus 21 anos de cabelos ruivos, no preto e branco do filme, a atingirem um brilho esplendoroso.
Um filme em que não há nada, mas mesmo nada, que não
esteja no lugar certo.
A perfeição é possível?
Ainda João Bénard da Costa: Há quem diga que tudo o que vive é sagrado, Ford, que o não disse filmou-o.
Como isto não é um exercício de crítica ao filme, antes uma relembrança do quanto é belo o cinema, deixo o discurso de Mr. Gruffydd, o padre que vai ser julgado pelo conselho dos diáconos, gente que, ao longo dos tempos, a Igreja sempre guardou em si, como defensores de uma moral obsoleta, hipócrita, tão característica dos beatos e beatas de sacristia.
O meu avô paterno, anticlerical militante, adorava este discurso, o discurso de Mr. Gruffydd, interpretado por Walter Pidgeon:
Esta é a última vez que tomo a palavra nesta capela.
Vou deixar o vale com mágoa, por aqueles que me ajudaram aqui, e que deixaram
que eu os ajudasse. Mas... para os restantes, aqueles que provaram que
desperdicei o meu tempo entre vós, só tenho uma coisa a dizer. Não houve um único
entre vós que tenha tido a coragem de vir ter comigo e me acusar de alguma má
acção. Mesmo assim, seja como fôr, se houve algum pecado, sou eu quem deve ser
considerado pecador. Há alguém que queira erguer a voz, aqui e agora, para
me acusar? Não. Também são cobardes para além de hipócritas. Mas eu não vos
culpo. A culpa é tanto minha como vossa. As línguas ociosas e a pobreza de
espirito que têm demonstrado, significam que não consegui transmitir à maioria
a lição que me foi dada para ensinar. Quando era jovem pensava
que podia conquistar o mundo com a verdade. Pensava vir a
dirigir um exército maior do que Alexandre alguma vez sonhou. Não para
conquistar nações mas para libertar a espécie humana.
Com a verdade. Com o som dourado da palavra. Mas só uns quantos escutaram. Só uns poucos de vocês compreenderam. Os restantes vestiram-se de preto e sentaram-se na capela. Porque é que cá vêm? Porque vestem de preto a vossa hipocrisia e a exibem perante Deus aos domingos? Por amor? Não. Já demonstraram que têm o coração demasiado definhado para receberem o amor do Vosso Pai Divino. Eu sei porque vieram. Vi-o nas vossas caras todos os domingos enquanto estavam aqui de pé perante mim. Foi o medo que vos trouxe cá. Um medo horrível e supersticioso. Medo da retribuição divina. Um relâmpago e o fogo dos céus, a vingança do Senhor e a justiça de Deus. Mas esqueceram-se do amor de Jesus. Ignoraram o seu sacrifício. A morte. O medo. As chamas, o horror e as roupas negras. Reúnam então o vosso conselho. Mas saibam que se estão a fazer isto em nome de Deus e na casa de Deus, estão a cometer uma blasfémia contra Ele e a sua palavra.
A mesma voz off que nos introduz o filme, encerra-o:
Homens como o meu pai não podem morrer. Permanecem
ainda hoje, comigo, tão reais na memória com o eram na carne, amando e amados.
Como era verde o meu vale.
Estive a rever o filme.
Quando chegou o The End, se vos disser que os
meus olhos estavam secos, não acreditem.
Texto publicado em 19 de Outubro de 2012.
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