É curioso que, não
sendo Hemingway, nem de perto nem de longe, o escritor americano que mais
admiro, é aquele que melhor conheço na intimidade, se é que assim se pode
chamar a algumas casas onde viveu e que hoje são atração turística, bem como
uns quantos cafés e bares que hoje vivem quase à custa da sua memória.
Muito mais conhecido
do que lido, Hemingway é, seguramente, um dos escritores mais populares da
história da literatura e quase tudo onde tocou, hoje se transformou em ouro, o
que quer dizer grandes negociatas.
Muito pouca gente
sabe onde James Joyce ia tomar o seu café em Paris, mas quase toda a gente sabe
que Hemingway, como muitos outros escritores daquela a que Gertrude Stein
chamou “Geração Perdida”, frequentava o “Harry’s Bar”, na Rue Daunoud.
A coisa funciona
assim como uma espécie de íman. Basta-nos saber que Hemingway lá viveu ou por
lá passou e, quase que inconscientemente, aí vamos nós atraídos pelo seu campo
magnético...
É uma saloiice, claro
está, e presta-se a todos as golpadas oportunistas que se possa imaginar, sobretudo
em Espanha devido ao facto de Hemingway por lá ter andado durante muito tempo a
ver corridas de toiros e a acompanhar, como repórter, a Guerra Civil Espanhola.
Em quase todos os
lugares por onde passamos há sempre um sítio onde Hemingway fez qualquer coisa:
comeu, bebeu, fumou, amou, dormiu, escreveu, eu sei lá…!
A melhor caricatura
que me lembro de ter visto acerca desta situação foi num restaurante em Madrid,
ali para as bandas da Plaza Mayor, que tinha escrito na sua montra em letras
garrafais “HEMINGWAY NUNCA COMIO AQUI!”.
Mas apesar deste
paleio todo, também eu, como bom turista saloio que sou, já embarquei muitas
vezes nessas histórias da memória de Hemingway.
Em Paris fui ao
“Harry’s Bar”, claro está, embora tivesse corrido sérios riscos de ser posto na
rua por ter tido a infeliz ideia de pedir um “Drambuie”…! Era muito novinho e
na altura era o que estava habituado a beber como digestivo, mas hoje riu-me de
cada vez que me lembro dessa cena. É assim como estar num bom “Champanhe Bar” e
perguntar se têm “Fita Azul”…!!!
E também fui uma vez
ao Bar do Hotel Ritz tomar uma “flute” de espumante, porque se contava que no
final da II Grande Guerra , na altura da entrada em Paris do Exército Aliado, o
próprio Hemingway tinha chefiado um pequeno grupo da Resistência e libertado
esse bar dos alemães, que se haviam instalado no hotel durante a Ocupação… Não
sei se é verdade ou não mas, como dizem os italianos, “se non è
vero, è ben trovato”...
E em Madrid não
poderia ter deixado de ir ao “El Chicote” da Gran Via, em cuja “barra”
Hemingway se sentava, frequentemente, a beber “su cocktail”… E só
não fui ao Hotel Florida, onde ele e Martha Gellhorn estiveram instalados
durante a Guerra Civil e onde ele escreveu a sua única peça teatral, “The Fifth
Column”, porque já tinha sido demolido no início dos anos
sessenta.
Em Cuba, como é de
bom tom, tive de ir meter bedelho saloio na “Finca Vigia”, na “Bodeguita del
Medio”, no “El Floridida” e no Hotel Ambos Mundos.
Mas a primeira das
casas de Hemingway que visitei foi a de Key West, onde ele viveu entre 1931 e
1939 e onde terminou a escrita de “Adeus às Armas”, começou a de “Por Quem os
Sinos Dobram” e escreveu obras como “Ter ou Não Ter”, “As Verdes Colinas de
África” ou “As Neves de Kilimanjaro”.
Em boa verdade
Hemingway veio para Key West mais cedo, em 1928, a conselho de John dos Passos,
mas viveu sempre em casas alugadas até que o rico tio da sua mulher de então,
Pauline Pfeiffer, avançasse os 8.000 necessários para a aquisição desta casa
que aqui vos mostro.
Mas, a não ser que se
seja um estudioso ou um grande admirador do autor, não se vai a Key West de
propósito para ver a casa de Hemingway, mas sim para fazer aquela fabulosa
estrada das “Florida Keys” de que já vos falei noutra ocasião, e que é
considerada uma das mais belas de todos os Estados Unidos.
E vai-se, também,
porque a cidade é muito aprazível, o mar azul turquesa convida a um mergulho,
ainda que rápido, e já cheira a Cuba ali tão perto, a apenas 140 km de
distância.
E ainda porque –
dizem – Key West tem um dos mais bonitos pôr-de-Sol da Florida, mas isso eu não
vos posso confirmar porque, à hora dele, estava a tomar conta da minha mulher e
da minha filha, que resolveram ir dar um mergulho no pontão...
Mas se não se vai lá
de propósito, a verdade é que também ninguém que goste um pouquinho que seja de
Literatura pode aceitar sair de Key West sem deixar de ir dar um pulo à “Casa
de Hemingway”…
E foi confortado por
esse excelente álibi cultural que lá me deixei ser atraído pelo íman na direção
do nº 907 de Whitehead Street.
A casa é antiga, em
estilo colonial espanhol, e foi mandada construir em 1849 por um rico armador,
cujos descendentes, muitos anos depois, se desfizeram dela.
Quando foi comprada
pelos Hemingway - ou, melhor dizendo, pelo generoso tio de Pauline - estava em
muito mau estado de conservação e teve de ser recuperada.
Nada que preocupasse
muito Pauline Pfeiffer, que era uma antiga editora da revista Vogue, com muito
bom gosto para a decoração.
A casa foi por ela
decorada com mobiliário do século XVII francês e do século XVIII espanhol, e
com outros objetos de muito valor, a que se acrescentaram as peças de coleção
que foram oferecidas a Hemingway ou ao casal pelos seus amigos, como é o caso
de Pablo Picasso e Marlene Dietrich. E isto para já não falar dos habituais”troféus
de caça” de Hemingway, é claro...
A casa está também
repleta de quadros e fotografias que retratam a vida de Hemingway, não só em
Key West mas noutras paragens.
Um dos mais curiosos
quadros é este que poderão ver do lado esquerdo de uma das fotografias, que
mostra Hemingway e o seu amigo pescador cubano Gregório Fuentes, em cuja figura
aquele se inspirou para criar o Santiago de “O Velho eu Mar”.
A casa tem dois pisos
e uma larga varanda à sua volta, que proporciona uma bela vista para o farol,
que fica lá mesmo ao lado. Hemingway gostava muito de se esticar nesta varanda,
ao final da tarde.
Apesar de não lhe
faltar espaço para isso nos muitos quartos e salas de que a casa dispõe,
Hemingway não trabalhava no edifício principal, mas num anexo que mandou
construir nas traseiras mediante a adaptação de uma velha cocheira, o qual
passara a ser o seu escritório privativo. O “antro do bicho”, como o meu velho
sogro Freitas Santos gostava de dizer…
A piscina colada ao
edifício do escritório foi um acrescento recente. Fora uma surpresa de Pauline
quando Hemingway regressou de Espanha, em 1937, e era a única piscina de água
salgada existente em Key West naqueles tempos. Ele deitou as mãos à cabeça
quanto soube que a piscina tinha custado 20.000 dólares e, tirando uma moeda do
bolso disse à mulher: “Toma lá o meu último cêntimo para a ajuda…” A
história é verídica e a moeda ainda hoje lá está incrustada no cimento….!
Mas a piscina não
iria deixar muito boas recordações a Hemingway. Primeiro porque ele se queixava
que o barulho não o deixava trabalhar em sossego, e depois porque os seus dias
em Key west também não iriam durar muito mais tempo...
Hemingway adorava
gatos e teve felinos em todas as casas onde viveu.
Mas nesta não o fez
por menos e diz-se que chegou a ter 60 gatos, que deambulavam pela casa em
total liberdade.
Hemingway perdera-se
de amores por um gato - um macho - que pertencia a um velho marinheiro capitão
de longo curso que estava temporariamente destacado em Key West, e que quando
se foi embora o deixou como oferta. A curiosidade é que esse gato, que se
chamava Snowball, era de uma raça muito rara - um polidático - e tinha seis
dedos em cada pata, em lugar de cinco.
Snowball deixou uma
vasta descendência e ainda hoje existem (ou existiam quando por lá passei...)
58 gatos naquela casa, metade dos quais polidáticos, uns com seis e outros com
sete dedos.
Esses gatos têm (ou
tiveram…) nomes de gente célebre como Marylin, Ava, Shakespeare e Hillary e
Bill Clinton. Não sei se por estes dias alguém fez a maldade de chamar Trump a
um desses jovens bichanos. Se sim, talvez a um com tendência para se portar mal
e só fazer disparates…!
Os gatos que vão
desaparecendo, repousam num pequeno cemitério existente num dos extremos da
casa.
O total direito à
liberdade de movimentos por parte desses gatos ainda hoje se mantém, pelo que
não é estranho encontrarmos alguns deles no interior das salas, refestelados em
cima dos expositores, como poderão ver numa das fotografias.
Apesar de vos ter
tido no início que Hemingway viveu em Key West de 1928 a 1939, ele não
conseguia estar muito tempo parado no mesmo sítio e muitas foram as saídas, de
menor ou maior duração, que fez durante esse período. Tudo somado, é bem
possível que tenha passado mais tempo fora do que dentro de Key West.
Paris, e Espanha, por
exemplo, eram lugares onde nunca deixou de ir com alguma regularidade.
No início dos anos
30, na época de Verão, tinha por hábito passar umas semanas no Wioming, onde se
sentia bem a escrever.
Em 1933 esteve
durante dez semanas em África, onde participou em safaris e recolheu material
para o seu livro “As Verdes Colinas de África”, publicado em 1935.
Em 1934 comprou o seu
barco “Pilar” e navegava frequentemente pelo Golfo do México e pelo Mar das
Caraíbas. Numa dessas viagens, com amigos, aportou em Cuba e a partir de então
todos os anos lá ia passar uma temporada na época da pesca do marlim,
instalando-se no “Hotel Ambos Mundos”, na parte mais antiga da cidade.
Em 1937 foi para
Espanha como repórter da “North American Newspaper Alliance”, e também para
colaborar, juntamente com o seu amigo John dos Passos, no guião de um
documentário - que se viria a chamar “The Spanish Earth” - que o holândes Joris
Ivens se preparava para rodar sobre a Guerra Civil Espanhola. Lá voltaria por
mais duas vezes, em 1938.
Não foi em Madrid que
conheceu a então aprendiza de repórter de guerra Martha Gellhorn, enviada pela
revista Collier’s, que já tinha encontrado antes em Key West. Mas foi em Madrid
que o relacionamento entre ambos se iniciou, parecendo dar razão a Scott
Fitzgerald, que uma vez lhe terá dito que ele iria precisar de uma nova mulher
a cada novo livro que escrevesse...
É que Hemingway saiu
de Espanha com um novo romance na cabeça, que era, como se sabe, “Por Quem os
Sinos Dobram”, uma das suas obras mais conhecidas e, para muitos, a melhor.
No início de 1939
regressaria a Cuba onde ficaria durante os próximos vinte anos, embora sempre
com as escapadelas do costume. Martha Gellhorn juntar-se-ia a ele pouco tempo
depois e casariam em Novembro de 1940, depois de consumado o difícil divórcio
com a muito católica Pauline Pfeiffer.
Assim se terminava a
aventura de Key West, onde Hemingway ainda regressaria algumas vezes, de forma
esporádica.
A casa manter-se-ia
em poder da Família Hemingway até ser aberta ao público, como Museu, em 1962,
integrando, a partir de 1968, o “National Historic Landmark”.
Para não vos
massacrar mais, hoje ficar-me-ei por aqui mas contar-vos-ei, no próximo texto,
a maneira curiosa como Hemingway levava a sua vida em Key West, quando por lá
andava.
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