terça-feira, 22 de setembro de 2020

LEMBRAVA-SE

Lembrava-se dele e, por amor, ainda que pensasse
em serpente, diria apenas arabesco; e esconderia
na saia a mordedura quente, a ferida, a marca
de todos os enganos, faria quase tudo

por amor: daria o sono e o sangue, a casa e a alegria,
e guardaria calados os fantasmas do medo, que são
os donos das maiores verdades. Já de outra vez mentira

e por amor haveria de sentar-se à mesa dele
e negar que o amava, porque amá-lo era um engano
ainda maior do que mentir-lhe. E, por amor, punha-se

a desenhar o tempo como uma linha tonta, sempre
a cair da folha, a prolongar o desencontro.
E fazia estrelas, ainda que pensasse em cruzes;
arabescos, ainda que só se lembrasse de serpentes.

Maria do Rosário Pedreira em PoesiaReunida

3 comentários:

Seve disse...

Não sendo eu um conhecedor nem um grande apreciador de poesia, não posso deixar de salientar que a Maria do Rosário Pedreira me parece ser uma excelente poetisa!

E estou-lhe muito grato porque todos os dias nos presenteia, no excelente blogue Horas Extraordinárias, com os seus vastos conhecimentos de literatura (e são igualmente muito interessantes os comentadores que o frequentam).

Sammy, o paquete disse...

Nos anos 60, «formei-me» em poesia portuguesa com os excelentes volumes da colecção «Poetas de Hoje», editados pela Portugália Editora. A Maria do Rosário Pedreira, pela minha parte, é uma descoberta tardia. Mas quando li o primeiro poema não mais a larguei. Se o Seve, poéticamente, pretender conhecê-la melhor, tem um livro editado em 2013 pela Quetzal, «Poesia Reunida» em que está lá tudo.

Seve disse...

Obrigado pela sugestão, Sammy.