Para assinalar os 10
anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar
alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
RECUPERADOS
Encontrei a tradução (?) de «The Ghost
and Mrs. Muir», da escritora irlandesa R. A. Dick, num desses vãos de
escada que vendem de tudo: livros, revistas, discos, postais, plantas, o mais
que imaginar se possa.
Entro sempre nessas lojecas, nem que seja para olhar
mas também porque há a ténue possibilidade de encontrar uma qualquer pechincha.
Não tem indicação do autor da tradução e
pelo que li, cheguei à conclusão que não deve passar de uma versão de um
qualquer alguém com o fito de ganhar uns tostões, poucos que fossem.
Saltam á vista as gralhas, as discrepâncias de
tradução, os nenhuns cuidados postos no produto final.
Enfim…
Mas não resisti a trazer o livro.
Uns meros 50 cêntimos que me possibilitaram ir à
estante e fazer descer o DVD para mais um visionamento. Já lhes perdi o conto.
Também pretexto para repetir aqui uns textos
publicados em Fevereiro de 2012.
João Bénard da Costa morreu a 21 de Maio de 2009.
Tinha 74 anos.
Em 2012, se por cá andasse, faria 77 anos e a Cinemateca,
em homenagem, exibiu um dos seus filmes da vida: OFantasma Apaixonado.
Reproduzo os textos que por esse tempo aqui foram
publicados.
O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?
Há essa batida
vulgaridade do filme a levar para a tal ilha deserta, há a vontade de, por uma
vez, dizer que, se Joseph L. Mankiewicz não tivesse realizado outros grandes
filmes, The Ghost and Mrs. Muir era suficiente para o lugar de honra
que ocupa na História do Cinema.
Trivialidades
parvas mas é o que sinto em relação a este espantoso filme, realizado em 1947,
tinha eu 2 anos, que já vi um milhão de vezes – e continuo a pensar
que não são suficientes.
A primeira vez
que vi o filme, e não lembro com que idade isso aconteceu, mas já tinha passado
o tempo dos primeiros amores, fiquei marcado aos primeiros minutos do correr da
fita, assim um tanto ou quanto para não saber o que dizer,
ainda hoje não sei, nem nunca saberei.
Cada vez que
dele vejo uma referência, cada vez que o revejo, há sempre uma imensa nostalgia
a mexer nos coios da melancolia, assomos da mais bela e esplêndida
mentira, quando Lucy Muir, esplendorosa Gene Tierney, nos diz:
Pode parecer
estranho, mas por vezes há um maior sentimento de solidão na companhia de
outras pessoas, mesmo se as amarmos, do que se vivermos sós.
Numa crítica ao
filme, agora não encontro o recorte mas penso ser de Rui Luís Pina, a abrir,
pode ler-se:
Será possível
amar-se alguém que não existe?
Quando um dia li
o que João Bénard da Costa escrevera sobre o filme, dei comigo a descobrir
coisas em que não tinha reparado e que redundaram, para os meus sentidos, em
pérolas apaixonantes, e tenho como certo que, a cada novo visionamento, a
aventura se repetirá.
O texto foi
inicialmente publicado no semanário O Independente, as crónicas do João
Bénard da Costa eram motivo único para comprar o pasquim, e mais tarde foi
incluído no 2º volume de Os Filmes da Minha Vida, cuja transcrição
ocorre no post seguinte.
Nas Obras
Completas de João Bénard da Costa, em publicação pela Assírio &Alvim, no 2º
volume de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, o texto do filme é
repetido,
mas é precedido
de uma deliciosa nota do autor .
Em 1979 João
Bénard da Costa organizou para a Fundação Calouste Gulbenkian um
Ciclo sobre cinema americano dos anos 40, e pediu a Mary Meerson, uma mulher de
mil cinematecas, Bénard diz que a ela deve o seu nome como
programado, que o ajudasse a arranjar filmes e uns cartazes para que
pudesse organizar uma exposição paralela.
Assim diz João Bénard:
Assim diz João Bénard:
«Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath, de
John Ford, e de The Gost and Mrs. Muir, de Joseph L. Mankiewicz. São cartazes
enormes e vinham montados em diversos rolos, para depois se colarem e se
pendurarem nas fachadas do cinema, como nos anos 40 se usava. Mandei-os para o
serviço de exposições da Gulbenkian, que pouco habituado àquele género de
materiais, os montou, sim, mas os colou em enormes e pesadíssimos
contraplacados de madeira. Quando assim os vi, caiu-me a alma aos pés. Como é
que eu ia devolver aqueles “monstros”? Descolar os cartazes nem pensar, que
ficavam em fanicos. Reenviá-los para Paris só em camião especial e por uma
fortuna. Telefonei-lhe a contar o sucedido e ela respondeu-me, com a maior
naturalidade do mundo: “Guarde-os. Pode ser que lhe sejam úteis."»
Enquanto
permaneceu na Gulbenkian, de 1979 a 1981, os cartazes estiveram no seu
gabinete, e bem à sua frente colocou o cartaz de The Ghost and Mrs
Muir da Gulbenkian.
Regresso à
narrativa de João Bénard:
«Em 91, trouxe os cartazes para a Cinemateca. Hoje o
das Vinhas da Ira anda por lá. No meu gabinete, em frente à minha mesa só o do
Fantasma. Vinte e seis anos (1979-2005) a viver com ele e com Mrs. Muir. Muir
dele é muito tempo. Mais do que umas bodas de prata. Mas a profecia de Mary
Meerson cumpriu-se. Também foi para isso que ela mos mandou.»
Correndo o risco
de dizerem que os nossos posts são enormes, não há pachorra para
os ler, publica-se mais à frente o texto sobre o filme.
É também a
homenagem a um homem, felizmente controverso, e a quem os cinéfilos
portugueses, por mim falo, muito devem.
Mas, por favor,
na terça-feira, não percam o filme, porque é na sala escura de um cinema, que
os filmes atingem toda a grandiosidade.
Não esqueçam
nunca, que a cultura é sempre um prazer.
Lembro-me que gostei. Lembro-me que gostei muito. Mas
nunca imaginei que ia gostar tanto e que tanto, toda a vida, me ia lembrar
desta história de amor e de morte. Aos 12-13 anos, os grandes amores são
solitários e são coisa de nós com nós, sem mais corpo do que o próprio. Por
esse lado, podia, obscuramente, como através de um espelho, desvendar parte
importante do criptograma do filme. Mas ainda era muito cedo (e agora talvez
seja muito tarde) para desvendar a parte que com essa parte se soma. Aos doze anos,
a morte é uma palavra vaga e os fantasmas brincadeiras para sustos a pregar uns
aos outros. Precisei de mais trinta anos (trinta e dois, se contar pelos dedos)
para saber que o Capitão Daniel Gregg (Rex Harrison) não era fantasma nenhum ou
era o fantasma todo. Nesse dia, preguei o imenso poster do filme (o original)
na parede que fica na frente da minha secretária na Gulbenkian. Eu já lá não
estou, o poster ainda lá está (1) Gene Tierney (Lucy Muir) em
primeiro plano, imensa e vogante, «with that taunt in her smile». Rex Harrison, na sombra, atrás dela,
«with that haunt in his kiss». E, no canto direito, em baixo, muito
mais pequenino, George Sanders «without a ghost of a chance». «The Flesh
... So Wéak.» «The Spirit ... So Wiliing.» Podia ser ao contrário, mas
assim sossega mais. E também por lá se diz, na capa de um livro fechado,
que «the film becames the delight of your life.» Não sei
se "delight" é a palavra mais própria, mas muita coisa em a
minha vida "becamou".
Mrs. Muir - já o disse - é Gene Tierney, nos anos
de "Laura", de "Leave Her to Heaven", de
"Dragonwyck", nos anos em que mais Gene Tierney foi, mulher
patchuli, mulher asfódela. Mr. Muir - quem quer que tenha sido - nunca o
conhecemos. Morreu antes do filme começar, de um flato ou de coisa parecida,
deixando-lhe a cara e o corpo magníficos envoltos em crepes, como em crepes se
envolviam as viúvas inglesas do princípio do século, tempo e país do início da
acção. A adivinhar pela família com quem a deixou a viver (sogra e cunhadas),
nem ela nem nós perdemos grande coisa. Mas deixou-lhe uma filha de sete anos,
papel confiado à criança que então era Natalie Wood.
Para fugir dessa casa londrina, casa de um morto, casa
de mortos, decide Mrs. Muir, com enorme escândalo da família, mudar de ares e
mudar de mares, levando-se a ela, à filha e à criada (Edna Best) para uma praia
sobre o Atlântico, onde, de noite, o vento assobiava nas frinchas de madeiras
velhas e onde brenhas de ondas se batiam contra os penhascos. Das muitas casas
que lhe mostraram, nenhuma a convence. E só quis a casa que não lhe queriam
mostrar, porque - dizia -se - estava assombrada pela alma penada do Capitão
Gregg, que nela se suicidara. O fantasma não assusta Lucy Muir. Um fantasma é o
medo que a gente tem dele. E o medo do desejo não é medo de Gene Tierney. Por
isso, na casa, ama tudo o que nela ficou do capitão: o óculo na varanda do
quarto dele, o bezerro dourado que trouxe de uma das suas muitas viagens, o
retrato dele toscamente pintado, fardado de lobo de mar, com um sorriso entre o
sarcástico e o diabólico.
Uma mulher em sombra (o luto, os véus) troca um morto
por um fantasma. E se o morto a quisera enterrar viva (em Londres) o fantasma
vai e vem do mar, atravessa-lhe as janelas e propõe-lhe a mágica dissolução,
tão mágica como esse plano, entre todos mágico, em que, na primeira noite
passada na velha casa, Lucy acorda e vê o mar através da janela, essa janela
que fechara antes e que durante o sono se abriu. E, quando já tem a certeza que
ele está ali, Mrs. Muir desencadeia a aparição. Levanta-se, vai à cozinha e
risca um fósforo para acender o lume. As luzes todas apagam-se, a trovoada e os
relâmpagos começam. E é nesse momento que ela diz: «/ know you are there» E Rex
Harrison surge diante dela, malcriadissimo como só Rex Harrison soube ser, para
uma discussão nada metafísica sobre o direito de qualquer deles à posse
exclusiva da casa. Fantasma de desejo, Harrison é também fan tasma da violação
(de desejo da violação), donde a agressividade irónica das relações entre eles.
O livro faz Mrs. Muir voltar a Londres. O livro
publica-se, não fantomaticamente. E Londres e o livro vão trazer ao filme o
terceiro «morto»: o escritorzeco Miles Fairley (George Sanders). Há sempre um
momento em que, no reino dos mortos, alguém se volta para trás, à busca de uma
imagem mais "real". Gene Tierney inicia o seu terceiro Iove affair,
com a fraca réplica do capitão, que é a presença sedutora de George Sanders. O
fantasma começa por tentar expulsá-lo. Depois, rende-se à vida, no seu segundo
"suicídio". E é enquanto ela dorme («Ah! Comme Gene Tierney est
belle quand elle dort!») que Rex Harrison se vem despedir dela, na mais
bela sequência de sempre da história de Hollywood. «Oh, Lucia» (a voz de
Harrison, a música de Herrmann) «you are so little and so lovely» Depois,
recita-lhe Keats (Ode to a Nightingale) e fala-lhe de como teria gostado
de a levar a ver o sol da meia-noite, os fiordes da Noruega. «What you have missed, Lucia, by
being born too late to traveI the Seven Seas with me! And what I've
missed too» Depois, ele que, antes, num momento em que ela demasiado se
aproximou dele, lhe dissera rudemente: «Keep your distances, madam»,
inclina-se para ela num quase beijo que, de novo, interrompe. E afasta-se para
a janela e para o óculo, que nunca mais vai poder ver o invisível. No sol da
manhã seguinte, o capitão desapareceu da vida e da casa de Lucy Muir, que só o
capitão tratava por Lucia, como se ela viesse de Lammermoor.
Mas com ele - pouco depois dele - desaparece também
George Sanders. Quando Gene Tierney o vem buscar a terra firme (a casa dele)
descobre que esse outro "sonho" ocultava a dura realidade de uma
banal mentira e de uma banal mediocridade (Sanders era casado e a sua história
uma história contada a muitas e passada com muitas). Daí para diante não há
mais homens - vivos ou mortos - na vida de Mrs. Muir.
E o tempo começa a passar muito depressa. Depressa
envelhece Mrs. Muir. Depressa a filha cresce e a filha casa, para só então
contar à mãe que ela também, em criança, vira o fantasma. E depressa chega uma
tarde (um fim de tarde) em que Mrs. Muir, de cabelos brancos, se sente muito
cansada e pede à criada um copo de leite. Não chega a bebê-lo. O copo
escorrega-lhe das mãos e Mrs. Muir morre, agasalhada, na cadeira em frente ao
mar em que sempre se sentou. A imagem desdobra-se. E os dois fantasmas - o
dele e o dela, como foram quando eram - ficam a olhar para a velha morta.
Depois, descem as escadas de mãos dadas e depois abrem a porta e desaparecem,
entre a música, no meio da névoa.
«I
have been half in love with easeful Death ... / Was it a vision or a waking
dream?» (Keats).
De todas as artes, o cinema é a mais onírica. E essa
dimensão nunca existiu tanto como nos filmes "germanizados" ou
"germanizantes" feitos em Hollywood nos forties. Joseph L.
Mankiewicz (1909-1993), o realizador de “The Ghost and Mrs. Muir” e que só
agora nomeio, não era alemão, mas descendia de alemães e na Alemanha se formou.
Toda a sua vida procurou o cinema total. Apesar de muitas outras obras
-primas, nunca esteve tão perto como neste filme de que disse recordar
sobretudo «o vento, o mar e a procura de qualquer coisa de diferente». «E as
decepções que se tem»
Não há filme mais triste. Não há filme mais bonito.
Deixem-me ficar ao pé da mulher que nasceu tarde demais para atravessar os sete
mares e para ver o sol da meia-noite. Deixem-me ficar ao pé do capitão que
morreu cedo demais para a poder beijar ou para poder deitar-se com ela. Ou
deixem-me acreditar que não há cedo nem tarde e que o único amor que existe -
porque é o único em que acreditamos que existe é o amor
surreal, esse que Rex Harrison e Gene Tierney encontram no final, quando
desaparecem na névoa, atravessada a última porta.
(1) Agora, já não está. Mas, embora
empalidecido pelo sol (quem é que se lembra de pôr fantasmas ao sol?) continua
no meu gabinete. Na Cinemateca.
João Bénard da Costa em Os
Filmes da Minha Vida.
2 comentários:
Muito interessante deve ser este livro do João Bénard da Costa (em dois volumes?).
Obrigado Sammy pela (implícita) sugestão.
São 3 livros que agrupam as crónicas que o João Bénard da Costa publicou no semanário «Independente» e foram editadas pela Assírio e Alvim:
«Muito Lá de Casa» - Dezembro de 1993
«Os Filmes da Minha Vida» 1º Volume - Novembro de 1990
«Os Filmes da Minha Vida» 2º Volume - Maio de 2007
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