Os Papéis de K.
Manuel
António Pina
Capa:
pintura de Ilda David
Assírio
&Alvim, Lisboa, Junho de 2003
Aquilo de que me lembro (num presente que me
parece também já passado) está cheio não só de estranhezas e improbabilidades
mas igualmente de vazios, de hesitações e de imprecisões, pois se calhar não me
recordo de factos mas da minha recordação deles. Pode por isso suceder que o
que recordo não seja o que ouvi; ou o que tenha ouvido a outra pessoa, noutro
lugar, noutras circunstâncias; ou mesmo que o tenha eu próprio sonhado ou
imaginado. Ouvi e li muitas coisas desde a minha distante primeira viagem ao
estrangeiro, onde tudo (pelo menos aquilo de que agora me lembro) começa.
Talvez, quem sabe?, nem essa viagem tenha acontecido, ou eu tenha lido, ou
ouvido contar a ninguém. A matéria da memória é indefinida e insegura e nela,
como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem
acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é
dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos
escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, memória
Sem comentários:
Enviar um comentário