quinta-feira, 21 de julho de 2016

OLHAR AS CAPAS


Os Papéis de K.

Manuel António Pina
Capa: pintura de Ilda David
Assírio &Alvim, Lisboa, Junho de 2003


Aquilo de que me lembro (num presente que me parece também já passado) está cheio não só de estranhezas e improbabilidades mas igualmente de vazios, de hesitações e de imprecisões, pois se calhar não me recordo de factos mas da minha recordação deles. Pode por isso suceder que o que recordo não seja o que ouvi; ou o que tenha ouvido a outra pessoa, noutro lugar, noutras circunstâncias; ou mesmo que o tenha eu próprio sonhado ou imaginado. Ouvi e li muitas coisas desde a minha distante primeira viagem ao estrangeiro, onde tudo (pelo menos aquilo de que agora me lembro) começa. Talvez, quem sabe?, nem essa viagem tenha acontecido, ou eu tenha lido, ou ouvido contar a ninguém. A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, memória

Sem comentários: