A carta que a
seguir se transcreve, de José Saramago para José Rodrigues Miguéis, gira à volta
de considerações sobre a publicação, pela Estúdios Cor, de A Escola do Paraíso, no Natal de 1960 - «Estamos a trabalhar em grande estilo para
que A Escola do Paraíso seja o seu presente de Natal ao leitor português»,
prometera Saramago a Miguéis.
Numa nota de
rodapé desta carta pode ler-se: Miguéis escreve por cima «é romance».
Sabemos, no entanto, que críticos como Óscar Lopes, por exemplo. Disseram não
ter lido A Escola do Paraíso como um romance, o que desagradou a Miguéis.
Carta datada de
Lisboa 14 de Outubro de 1960:
Acha realmente aconselhável, ou conveniente tirar do
livro a designação «romance»? Pois não será ele um «romance» que é, ao mesmo
tempo, um «panorama de uma infância lisboeta»? Pelo que vejo, os meus reparos
provocaram-lhe um problema de classificação que não me parece justificável nem
estava no meu intuito levantar. Romance é – e como tal será publicado e lido. E
não queira saber da bitola dos críticos peguilhentos, no número dos quais,
neste caso, me incluo…
E então esse ânimo que se diz vacilante e
desesperançado? Tirando os casos da sua vida que, como diz, o estão
atormentando de indecisões, e digo tirando porque esses são o nosso tributo de
homens que mil prisões tolhem e limitam – que outra coisa se pode esperara
desta miséria rasteira e indigna que a si mesma vaidosamente se chama «a intelectualidade
portuguesa»? Em Portugal, os bons e os puros não podem trabalhar para, mas sim
contra. Trabalha-se para num país são, arejado, vivo, num país como está o
nosso, só se pode trabalhar contra: contra a hipocrisia, contra a maldade que
se oculta e fere sob a capa da mansidão e da amizade. Mas, pensando bem, esta
terra sempre assim foi: e esse é que é o verdadeiro «mal português», a formiga
branca que nos rói as energias.
Às vezes dá ganas de desanimar, isso dá. Mas faça a
sua obra, deixe-os rosnar e morder, ignore-os. Lembre-se de que é só para o
leitor que escreve, esse leitor que, no outro dia no comboio, enquanto eu revia
as provas da Escola, lia no banco
da frente a Léah - «O Natal do Dr. Crosby»… este é que é o
sujeito-de-boa-vontade-gosto que deve interessar-lhe acima de tudo. O resto são
os oficiais do mesmo ofício, é a inveja, é o prémio Camilo Castelo Branco que
ainda não acabou de passar na garganta de certas pessoas, é o escritor
«americano» que vem tirara o lugar aos que cá estavam e viviam na suave e
inefável contemplação do próprio umbigo, é a safadeza, a pulhice, a velhacaria
que dá palmadas no ombro e punhaladas nas costas.
Sus, cavaleiro, ao infiel! E se o não puder derrubar a
lançadas, dê-lhe com a lombada da Escola!
Mas desanimar, isso não!!!
O Canhão está apurando contas, a ver em que ponto está
o «deve e haver» da nossa contabilidade consigo. Breve receberá notícias e
dólares.
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