Carta de José
Saramago, datada de Lisboa, 29 de Janeiro de 1960, para José Rodrigues Miguéis em José Rodrigues Miguéis/José Saramago Correspondência:
Meu caro Amigo
Ouso crer que no meio dos seus mil afazeres (só a Escola do Paraíso valerá por 999), não
lhe terá passado despercebido o meu silêncio. Uma gripe seguida de uma pequena
pneumonia secou-me a veia epistolar e a tagarelice e reduziu-me à triste
condição de acamado, com suores na fronte e frio mos pés. Misérias desta nossa
máquina que uma simples dor de dentes arruma no sótão das velharias!
O nosso amigo Canhão substituíu-me nas notícias
escritas, mas uma omitiu por supor que eu já a tinha dado: a recepção, a tempo
e horas, do Passageiro do Expresso,
Ainda não lhe tocámos, embora eu já o tenha lido. A sua ironia deixa a escorrer
sangue meia dúzia de mentiras sociais, daquelas que vão embaraçando a vida da
gente. Aquele pastor de almas que foi pelo testamento é que me parece sangrento
de mais para o Santo Ofício destes sítios. O mais prudente, de facto, será
cortar. Pessoalmente, eu sou pela publicação total de tudo, mas há
outras razões, um pouco envergonhadas, sim, mas ponderosas. Uma apreensão faria
mal a todos nós.
Conto que em breve possamos iniciar a composição.
Quanto à apresentação do livro, bem estudadas as coisas, afigura-se à equipa da
COR que o Meia Cara abriu um
caminho que deve ser continuado. É a sai colecção, aquela que acolherá o que a
Latitude não puder receber. Talvez se use um papel menos bom, mas nas linhas
gerais será o mesmo estilo. Publicada isoladamente, com outra vestimenta,
pareceria o princípio de nova colecção e o tempo não vai – ainda que o
contrário pareça a uns tantos Gallimards cá da terra – para colecções novas.
Seja como for, verá que gostará do seu Passageiro quando ele desembarcar…
A Escola, quando abre? A 3ª edição da Léah sai de capa envernizada, toda
trique-à-beirinha, de cinta flamante lembrando o prémio e informando o passante
de que é 7.º, 8.º, 9.º e 10º milhares. Um best-seller!
Conto em breve ser mais prolixo. Até lá, fica um
abraço do seu dedicado amigo e admirador
Saramago
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