Que ideia a sua de cuidar que eu andaria aqui
embezerrado, a rilhar enfados e malquerenças! Que grande engano o seu, se o
pensou. Os nossos arrufos passavam-se num plano a que se pode chamar «técnico»,
o qual plano nada tem que ver com o calor da boa e funda amizade que lhe
consagro. Fica é entendido que quando o autor-Miguéis tiver qualquer motivo de
queixa, por mais insignificante que seja ou pareça ser, rapa da portátil e põe
ali, preto no branco, enquanto tiver de ser, os seus agravos. Cã estão os
amigos-editores para os escutar e atender. E encerrado o incidente, passo ao
restante.
Já cá tinha lido a denúncia miserável do miserável
Anselmo. (*) Teria ficado edificado, se o não estivesse há muito quanto à
função policial por este «escritor» exercida. Bem compreendo a vontade de
voltar que essas coisas lhe estarão dando… Isto por cá está tão podre, meu
Amigo, tão triste e tão mesquinhamente pobre! Agora já nem da fachada se cuida:
como eu dizia há tempos em carta ao Jorge de Sena: «vive-se num jardim à
beira-morte plantado…» em constante incerteza e insegurança, num temor que
corrói tudo – a começar pelo futuro. Será que conseguiremos sobreviver? Como
lugar geográfico, naturalmente, mas como povo? Que lugar ocuparemos no mundo
daqui por cinco, dez anos? Põe-se a gente a imaginar, e o que imagina dá
vontade de fugir.
Carta de José
Saramago para José Rodrigues Miguéis, datada de 12 de Maio de 1961 em
Correspondência.
(*) Trata-se de
Manuel Anselmo e de um episódio relatado por Miguéis, em carta para Saramago,
datada de 10 de Abril de 1961:
A casa onde moramos, aqui, vais ser finalmente
demolida dentro não sei de que prazo, e temos agora a apoquentação duma mudança
– com rendas ao dobro! (Era uma casa velha, vasta, de renda fixada por lei.)
Basta isto para me desorganizar o trabalho. Foi uma das razões que cá me
trouxeram, porque minha mulher, cidadã americana, tem de ter domicílio aqui
estabelecido, se quiser residir em Portugal sem perder a naturalização USA –
Não sei se sabe que o gatuno encartado Manuel Anselmo acaba de me denunciar
(mais uma) no último dos seus Cadernos
periódicos: reproduz uma notícia do Avante de 1941, extraída dum
jornal americano, sobre um discurso que eu fiz aqui, nesse a ano a respeito da
invasão da URSS pelos alemães. Falei ao lado de professores da Harvard e de
líderes trabalhistas. Já se vê onde ele quer chegar – atingir o escritor através
do homem… de há vinte anos. Estão-me a fazer a cama, e isto dá-me imensa
vontade de voltar…
Legenda:
fotografia tirada do Catálogo da
Exposição comemorativa do centenário do nascimento de
Miguéis,
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