quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

DE PÉ, SEMPRE


Em casa, também trabalhava de pé.
Antes de ter o seu escritório, na sala de estar desta casa, havia um armário mandado fazer adequadamente à sua altura, com a comodidade necessária ao trabalho. Era o «armário!»
Alto, liso, com duas portas à frente e lá por dentro duas prateleiras a dividir o espaço. Em cima e do lado esquerdo, um candeeiro de bicha com um botão luminosos. Ao alto, na parede em frente, ironia pendurada: a moldura com uma fotografia a preto e branco que mostra Albert Einstein com a língua de fora. No tampo e apoio superior do armário, ao lado do candeeiro, um cavalinho de bronze a servir de pisa-papéis. Tudo absolutamente arrumado à frente, um lápis, uma esferográfica bic de cor azul e uma caneta de tinta permanente. Ao lado, papéis arrumados uns por cima dos outros e por ordem. Ele chegava da rua ao fim da tarde, percorria o longo corredor quase sem se ouvir, entrava naquela sala, ligava o rádio, ajustava-lhe o som nem alto nem baixo, dirigia-se ao armário. No verão, abria as janelas dessa sala que dava para os jardins das traseiras dos outros prédios e junto ao peitoril, às escuras, com uma expressão de grande serenidade, aspirava o ar quente da noite. E sempre a música que, baixinho, goteja da telefonia e acabava por inundar toda a divisão, dum som acostumado, antigo, indispensável. Encostado ao seu armário, carregava no botãozinho luminosos do candeeiro, ajeitava os papéis e, com gestos muito aplicados, desenroscava a tampa da caneta de tinta permanente, ensaiava a pena num papel exclusivamente para esse efeito colocado do seu lado direito, pensava um pouco apoiando os punhos na cabeça e, de repente, começava a escrever, a escrever sem qualquer interrupção. Horas sem fim ali de pé, num planar, num esvoaçar silenciosos para paragens tão distantes, naquelas lonjuras de espírito que ninguém alcança. Às vezes mexia as pernas, erguendo a perna direita em ângulo reto, depois a esquerda e assim sucessivamente, como que para desentorpecer aquele estado parado.
Às oito em ponto jantava.
E depois do jantar, até às onze, hora exata em que se deitava, lá estava a trabalhar apoiado no seu armário. De pé, sempre.
«Que bom que é dormir! É das coisas melhores do mundo!», ouvi-o tantas vezes dizer.

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