Em casa, também trabalhava de pé.
Antes de ter o seu escritório, na sala de estar desta
casa, havia um armário mandado fazer adequadamente à sua altura, com a
comodidade necessária ao trabalho. Era o «armário!»
Alto, liso, com duas portas à frente e lá por dentro
duas prateleiras a dividir o espaço. Em cima e do lado esquerdo, um candeeiro
de bicha com um botão luminosos. Ao alto, na parede em frente, ironia
pendurada: a moldura com uma fotografia a preto e branco que mostra Albert Einstein
com a língua de fora. No tampo e apoio superior do armário, ao lado do candeeiro,
um cavalinho de bronze a servir de pisa-papéis. Tudo absolutamente arrumado à
frente, um lápis, uma esferográfica bic de cor azul e uma caneta de tinta
permanente. Ao lado, papéis arrumados uns por cima dos outros e por ordem. Ele
chegava da rua ao fim da tarde, percorria o longo corredor quase sem se ouvir,
entrava naquela sala, ligava o rádio, ajustava-lhe o som nem alto nem baixo,
dirigia-se ao armário. No verão, abria as janelas dessa sala que dava para os
jardins das traseiras dos outros prédios e junto ao peitoril, às escuras, com
uma expressão de grande serenidade, aspirava o ar quente da noite. E sempre a
música que, baixinho, goteja da telefonia e acabava por inundar toda a divisão,
dum som acostumado, antigo, indispensável. Encostado ao seu armário, carregava
no botãozinho luminosos do candeeiro, ajeitava os papéis e, com gestos muito
aplicados, desenroscava a tampa da caneta de tinta permanente, ensaiava a pena
num papel exclusivamente para esse efeito colocado do seu lado direito, pensava
um pouco apoiando os punhos na cabeça e, de repente, começava a escrever, a
escrever sem qualquer interrupção. Horas sem fim ali de pé, num planar, num
esvoaçar silenciosos para paragens tão distantes, naquelas lonjuras de espírito
que ninguém alcança. Às vezes mexia as pernas, erguendo a perna direita em
ângulo reto, depois a esquerda e assim sucessivamente, como que para
desentorpecer aquele estado parado.
Às oito em ponto jantava.
E depois do jantar, até às onze, hora exata em que se
deitava, lá estava a trabalhar apoiado no seu armário. De pé, sempre.
«Que bom que é dormir! É das coisas melhores do
mundo!», ouvi-o tantas vezes dizer.
Catarina
Carvalho em Rómulo de Carvalho/António Gedeão, Príncipe Perfeito
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