sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

POBRETES MAS ALEGRETES


De visita a um sobrinho, fui dar com esta Casa-Mealheiro que me remeteu para os tempos da infância.

Diga-se que estes eram mealheiros de gente acima de remediada.

Os pobres não tinham mealheiros e os abaixo de remediados, se porventura tinham mealheiros, eram em barro ou eram latas.

Ao longo da infância, e mais qualquer coisinha, tive alguns mealheiros de barro, mas não me lembro de alguma vez os encher.

Ainda nem sequer chegara a meio e já estava de martelo na mão, por vezes nem martelo era necessário.

Quando não havia largueza de tostões, nem o pai nem o avô me valiam.

Para comprar o bilhete para as matinés de domingo do Cine-Oriente, havia que recorrer ao mealheiro.

E era o bilhete, mais os paladares, mais os tremoços.

O meu avô é o responsável de muitas coisas memoráveis da minha vida.

Dezenas e dezenas e dezenas de vezes, me foi dizendo que quando tivesse um ordenado, não deveria gastar mais, um tostão que fosse, do que aquilo que recebesse.


Anos mais tarde, li uma frase do escritor inglês Samuel Johnson que apontava, quase para o mesmo princípio: Tenhas o que tiveres, gasta menos.

Todo o consulado do botas-ditador-de-santa-comba é uma apologia à pobreza.

Devo à Providência a graça de ser pobre. Hei-de virar e sacudir as algibeiras antes de deixar o poder. Dos meus anos passados, nem sequer levarei a poeira.

De tristeza e solidão convenceu todo um povo que esse era o destino natural: ser pobre.

No poupar é que está o ganho.

Por pobres, uma passagem pela crónica Os Pobrezinhos, que faz parte do 1º volume das Crónicas do António Lobo Antunes:

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
(…)
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não


serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu.

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