De visita a um
sobrinho, fui dar com esta Casa-Mealheiro que me remeteu para os tempos da
infância.
Diga-se que
estes eram mealheiros de gente acima de remediada.
Os pobres não
tinham mealheiros e os abaixo de remediados, se porventura tinham mealheiros,
eram em barro ou eram latas.
Ao longo da
infância, e mais qualquer coisinha, tive alguns mealheiros de barro, mas não me
lembro de alguma vez os encher.
Ainda nem sequer
chegara a meio e já estava de martelo na mão, por vezes nem martelo era
necessário.
Quando não havia
largueza de tostões, nem o pai nem o avô me valiam.
Para comprar o
bilhete para as matinés de domingo do Cine-Oriente, havia que recorrer ao
mealheiro.
E era o bilhete,
mais os paladares, mais os tremoços.
O meu avô é o
responsável de muitas coisas memoráveis da minha vida.
Dezenas e
dezenas e dezenas de vezes, me foi dizendo que quando tivesse um ordenado, não
deveria gastar mais, um tostão que fosse, do que aquilo que recebesse.
Anos mais tarde,
li uma frase do escritor inglês Samuel Johnson que apontava, quase para o mesmo
princípio: Tenhas o que tiveres, gasta menos.
Todo o consulado
do botas-ditador-de-santa-comba é uma apologia à pobreza.
Devo à Providência a graça de ser pobre. Hei-de virar
e sacudir as algibeiras antes de deixar o poder. Dos meus anos passados, nem
sequer levarei a poeira.
De tristeza e
solidão convenceu todo um povo que esse era o destino natural: ser pobre.
No poupar é que está o ganho.
Por pobres, uma
passagem pela crónica Os Pobrezinhos, que faz parte do 1º volume das Crónicas
do António Lobo Antunes:
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
(…)
O plural de pobre não
era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias
reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e
outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os
seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da
periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de
distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não
serviam a
ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual
calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas
tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue
muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas,
e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre
perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente,
coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de
deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido
de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na
palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá,
não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe
respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha
senhora, vou comprar um Alfa-Romeu.
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