“A poesia está na rua”
Sophia, 25 de Abril de 1974
Agora, que já fizemos a revolução
Podemos começar a renovar a
habitação?
Os professores estão na rua.
Os médicos estão na rua.
Os agricultores estão na rua.
Os polícias estão na rua
(mas não para parar os outros;
estão na rua como os outros lá
estão.)
Os turistas estão na rua.
Milhões de turistas estão na rua.
Vão parando para tomar café nas
agências
imobiliárias, e vão comprando
palácios, aqui e ali,
entre um pastel de Belém e uma
imperial.
Alguns compram casas com gente lá
dentro, e despejam
o lixo e a gente das casas que ficam
vazias lá dentro,
mas eles voltam mais cheios lá para
fora.
Sentem-se mais vistos.
As pessoas estão na rua
(mas não para passear como os
turistas;
Estão como os turistas não estão:
A dormir na rua sem habitação.)
Os jovens estão na rua.
Comem o pão que a História amassou,
comem pão de ontem em casa dos pais
e os pais ajudam a pagar o bilhete de
avião
para que os filhos de amanhã comam
pão de amanhã.
E, sim, alguns jovens felizes estão
na rua, também,
mas na rua de Sydney, de Londres ou
Paris.
Falam bem inglês e até francês.
Sabem bem dizer saudade em português.
Jantam sushi e alugam apartamentos
com aquecimento
central na zona central, mas
telefonam muito à família
e o que queriam era poder viver em Portugal.
As flores não estão na rua
como no poema de Drummond de 1945.
A poesia não está na rua,
como no verso de Sophia de 1974.
Agora que já fizemos a revolução,
porque não amassamos o próprio pão
na nossa própria habitação?
Filipa Leal
Nota do Editor: este poema de Filipa Leal foi
copiado do jornal Público, 6 de Abril de 2024
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.
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