sábado, 18 de maio de 2024

CONVERSANDO


Longe do mundo, que é também o título de um livro do seu amigo Jorge Fallorca, Ana Cristina Leonardo, nas excelentes crónicas – é a minha opinião – que semanalmente publica no Público e depois coloca na Pastelaria, pode não ter assunto, como por aqui diz, o Eça lembrava que quando não se tem assunto para a crónica, há sempre um Bey que se pode matar em Tunes, manda-nos para outras paragens,  que olhemos as papoilas nos campos, mas depois, de sopetão, revela que a ex-múmia de Belém prefacia um livro de Aquilino, que não pero acaso está hoje no Olhar aa Capas.

«Quem – obrigado (mesmo se voluntariamente) a dizer coisas inteligíveis e de preferência inteligentes todas as semanas – nunca se debateu com a “falta de assunto” que atire a primeira pedra.

Lembrei-me depois de Camilo Castelo Branco e da sua copiosa produção literária, que a vida custa a todos (ou, pelo menos, à maioria).

Tomando-o por mestre – e mestre moderníssimo: que se lixem tanto os achaques românticos como os rigores do realismo! –, poderia agora, parodiando Eusébio Macário, um Macário agrário e não boticário, está bem de ver, reproduzir com minúcia a lista das distintas variedades de figueiras do Algarve – perfazem, segundo leio, oitenta e cinco –, o que decerto serviria para despachar pelo menos meia crónica, e isto no caso de poupar o leitor à caracterização morfológica das suas variedades, inventariando-lhes apenas os nomes próprios, alguns de sonoridades manifestamente pitorescas, como bilharda, colhão do mundo, sacristão da luz, cu de burro, bacorinha ou orelha de mula.

Se Cavaco Silva pode prefaciar Aquilino Ribeiro – segundo informação que me chega, o ex-Presidente da República preambula a nova edição de Geografia Sentimental, retrato aquiliano pessoalíssimo das terras da Beira Alta publicado originalmente em 1951 – porque não poderei eu, nunca tendo sido sequer presidente de junta, mas sabendo que “cidadões” é plural inexistente e que o número de cantos de Os Lusíadas são dez, aventurar-me por solos camilianos, trepando aos ombros de outro dos nossos gigantes, quando me falta assunto?

As Humanidades não humanizam, é sabido. Ainda assim, terem deslembrado os 500 anos de Luís de Camões é obra! E obra que explicará muita coisa. Por exemplo, as quinas que passaram a sete do jovem ufanista Bugalho (tratar-se-á de aritmética marciana?), ou o Atlético Norte por Atlântico Norte de Melo. Melo, o nosso mais original (até agora) ministro da Defesa Nacional que, adaptando medidas castigadoras de antanho aos novos tempos, propõe punir os jovens com a tropa no caso de assaltarem velhinhas.

Penso tudo isto, embora não necessariamente por esta ordem, enquanto me desvio, no regresso a casa, da folhagem do tronco rastejante da figueira que sombreia o alcatrão do caminho estreito que leva ao largo maior e mais adiante ao rio.

Escapando-me, porém, a coragem e a genialidade de Camilo para “desabar a pontapés de estilo” a sociedade, acobardo-me, omito a lista das oitenta e cinco espécies diferentes de figueiras algarvias e dou antes a palavra ao próprio: “… é necessário a quem reedifica a sociedade saber primeiro se ela quer ser desabada a pontapés de estilo para depois ser reedificada com adjectivos pomposos e advérbios rutilantes. Para isso, o primeiro avanço é pô-la nua, escrutar-lhe as lepras, lavrar grandes actas das chagas encontradas, esvurmar as bostelas que cicatrizaram em falso, escoriá-las, muito cautério de frases em brasa. É o que se faz nesta obra violenta, de combate, destinada a entrar pelos corações dentro e a sair pelas mercearias fora.” (“Advertência” in Eusébio Macário – História Natural e Social duma Família no Tempo dos Cabrais, Camilo Castelo Branco, 1.ª ed., 1879).

Sem abandonar a paródia, volto à vida rural, a despeito do encerro das mercearias, para dizer que a vida rural possui encantos e razões que a razão urbana desconhece.

Na grande cidade, uma frase como “Anda comigo ver os aviões” é facilmente interpretada como um metalogismo retórico em que o termo “aviões” ultrapassa o seu sentido literal – de acordo com os dicionários mais respeitáveis: “aparelho de locomoção aéreo, mais pesado do que o ar e provido de asas e motor”.

Como decifrar, porém, o convite de um pastor que nos diz “Quer vir comigo ver as ovelhas?”, desde logo de aparência mais respeitosa dada a forma interrogativa da frase e a incorporação do verbo querer e logo conjugado na terceira pessoa?»

Mas Cavaco Silva, que nem contas sabe fazer, lê livros, lê Aquilino?

Admiti estar perante uma tão em moda «falsa notícia» mas, por inacreditável que seja, é mesmo verdade!

Sem comentários: