quinta-feira, 16 de maio de 2024

POEMA DA MULHER DOS CABELOS BRANCOS

A mulher dos cabelos brancos estava à janela do primeiro andar
com os antebraços poisados no parapeito.
Tinha um xaile de malha sobre os ombros,
cruzado à frente e as mãos metidas nele.

Quentinha, a mulher dos cabelos brancos.

Postada à janela,
muito ocupada em fazer coisa nenhuma,
com os antebraços poisados no parapeito,
a mulher dos cabelos brancos
só seguia com os olhos quem passava na rua.
Ela nunca tinha ouvido falar no Aristóteles,
nem no Descartes, nem no Sigmund Freud,
mas sabia coisas concretas que a vida prática lhe ensinara.
Sabia que Eva tinha sido feita
de uma costela de Adão,
o que se prova
por os homens terem uma costela a menos do que as mulheres.
E também sabia que o Sol anda à volta da Terra
como é evidente,
e que as salamandras vivas,
postas no fogo,
não morrem nem sequer se queimam,
o que não é evidente mas é certo.
E por saber todas estas coisas,
e muito mais,
a mulher dos cabelos brancos sentia-se muito quentinha
com os antebraços poisados no parapeito.

Eis que, porém,
o relógio do tempo despertou-a.
Então,
pausadamente,
a mulher dos cabelos brancos ergueu o busto,
fechou a janela,
e foi sentar-se na cadeira do costume,
aconchegadinha,
a ver televisão.

António Gedeão de Novos Poemas Póstumos em Obra Completa

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