segunda-feira, 13 de maio de 2024

CARTA(S) A JORGE DE SENA

I

Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde

II

E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida

III

Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse

Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade

E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

IV

E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta

Sophia de Mello Breyner Andresen de Ilha em Cem Poemas de Sophia

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