Ruy Belo: Coisas de Silêncio
Duarte Belo e Rute Figueiredo
Capa e fotografias: Duarte Belo
Textos: Luís Miguel Cintra, Manuel
Gusmão, Rute Figueiredo
Assírio & Alvim, Lisboa, Junho de
2000
Reconhecemo-nos ainda. Gostamos do mar e
da terra a céu aberto. Árvores, searas, pedras, montes. Da praia. Dos campos.
Das igrejas. Das aldeias e das cidades com passado e com ruas muito grandes.
Dos textos antigos. De cartas e postais. E dos livros. E do povo. Das
procissões. Dos cafés. Do cemitério. De ir ao cinema. Ler o jornal. Mozart e
Bach. Não sabemos pôr gravata. Ainda temos camisas aos quadrados e vestimos
camisola. Não gostamos da manha e da astúcia. Somos pobres. Temos o sol e só o
que nos toca o coração. Alguns amigos mais. E carregamos nos ombros o amor da
vida toda e uma enorme saudade de Deus. Somos católicos. Acreditamos na alegria
e na pureza. Sabemos que o homem é Deus feito carne.
Reconhecemo-nos. Somos assim generosos,
é verdade. Sem esforço. E não vamos mudar. Não sei se somos um grupo nem
seremos com certeza uma geração, somos uma maneira de ser. E na poesia do Ruy
nos encontramos.
Sou e quero ser irmão ou herdeiro dessa
gente. Como o Duarte, legitimamente. E reconheço nas fotografias do Duarte,
como na poesia do Ruy, a passagem das nossas vidas, os lugares, as nossas
casas, os objectos a que nos afeiçoámos ou demos sentido, a memória dos nossos
corpos, dos nossos encontros, dos nossos grandes amores ou da nossa paixão. A
minha casa. Reconheço também o meu pai. Mas reconheço sobretudo o espaço. Ou o
tempo. «O Tempo Sim o Tempo Porventura». Estas fotografias, o seu pudor, são o
retrato de uma ausência. São fotografias da morte. Violentas. O que resta de um
cidadão, a mudança das idades, as coisas que tinha, os lugares onde esteve ou
onde estava, a roupa que vestiu, o que ficou do que escreveu. São o retrato do
tempo que foge, imenso. Mas mais ainda, tanto, o retrato do que falta. Falta a
vida neste vazio, neste espaço que vai da terra ao céu. E esse espaço, esse
vazio, é exactamente o espaço das palavras do Ruy. O espaço do que vive.
Perante a morte, constantemente, nesse único momento que se confunde com a
solidão mas abraça o mundo inteiro e que nos dá a nós a dimensão da vida. Tão
imensa diante do tempo que talvez nem na paixão possa encontrar a sua desejada
desmedida. Tão grande que convoca Deus. E já não sabemos de que ausência
falamos.
Texto de Luís Miguel Cintra
Sem comentários:
Enviar um comentário