sábado, 3 de janeiro de 2015

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


 Mudavam-se tempos e gostos. Silvana Mangano, seio farto e meia preta deixando à vela parte de sólida coxa, patinhando nos camalhões inundados da planície do Pó, no inesquecível «Arroz Amargo», esgotou duas sessões, na semana seguinte compensando materialmente o Tainha, reconciliando-o com o seu público e conquistando-o para o neo-realismo italiano, prato servido agora com abundância no écran vila-velhense.
Era no tempo em que, nas imediações do Cine-Teatro, florescia o chamado «mercado negro das legendas», onde se negociavam sobretudo gerais e superiores. Alfabetos privilegiados vendiam os seus serviços de leitores pelo preço do bilhete e dez tostões de tremoços. Um murmúrio subia dos lugares populares, um zumbido de abelhas na escuridão da sala, traduzindo aos vizinhos do lado os diálogos de Humphrey Bogart com Lauren Bacall, as tiradas de sir Lawrence Olivier, o discurso romano de Ana Magnani. O Pires marchante, cuja posição social impunha o primeiro balcão, só ia aos filmes portugueses. Em família definia assim o seu conflito com as legendas:
- Começo a solitrar, a solitrar, e quando vou arrebanhar já não tá lá nada!

Álvaro Guerra em Café Central, Edições «O Jornal», Lisboa Abril de 1984

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