sábado, 26 de novembro de 2016

CAFÉ


Quando,
à hora do Jazz,
a minha cabeça rola
pelo tecto pintado do café.
a parede em frente é uma visão de escola
onde um menino de bibe e gola
sonha com aquilo que não é.

E até os criados
têm ares purificados
como ascetas dum branco ritual.
E os mármores das mesas,
Com desenhos obscenos,
surdinam várias rezas…

E as garrafas dos álcoois e absintos,
em garbos áticos,
oferedam viáticos…

E há toalhas brancas e há velas acesas!

E ela vem sempre
(só a cabeça dela,
que o corpo
perdeu-o, porventura,
nalgum escuro quarto de aluguer).
Ela vem sempre,
Como naquele dia,
serena e amavia,
única e excepcional.

O pianista
comeu os dentes do piano
e canta, de pernas para o ar,
uma canção azul.
O violinista adormeceu de pé numa cadeira
e o violino dá som sem ninguém lhe tocar.

E ela vem sempre
como naquela hora
estranha, delicada
e debruada a encanto.
Pura como a água, suave como um manto.

O dia é Dia Santo…



Nota dos autores da Antologia:

SAUL DIAS (pseudónimo de Júlio Maria dos reis pereira, Vila do Conde, 1902-1983).
Engenheiro civil, artista plástico magnífico, Júlio é autor duma obra poética que injustificadamente ficou um pouco na sombra da do desmesurado José Régio, seu irmão. Saul Dias é um poeta contido, que capta com a humildade dos grandes observadores momentos essenciais, por vezes terríveis, por vezes jubilosos, da vivência humana. Contenção e tensão ilustradas pelos títulos dos seus livros.

Os antologiadores chamam a este poema de Saul Dias: um muito lógico café jazz surrealizado em 1934.

Legenda: Músicas e Mulheres no Espaço, pintura de Saul Dias

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