Mais do que as viagens, mais do que ficar a olhar
pelas janelas e os campos que corriam e não eu, foi o cinema que me deu a
paixão pelos comboios.
O cinema a preto e branco, evidentemente, onde os
comboios eram daqueles a sério, daqueles que apareciam e desapareciam entre
espessas nuvens de fumo, e depois no meio delas acabávamos por descobrir o
herói que chegava, ou que no final não tinha partido e decidira ficar nos
braços da sua amada para sempre.
Daqueles que faziam o Gary Cooper olhar vezes sem
conta para o relógio da parede, ao lado de uma Grace Kelly de chapelinho de
abas com laçarote a prendê-lo ao queixo, esperando a desgraça que devia chegar
a meio da tarde.
Daqueles em cujo topo Buster Keaton se passeava, entre
túneis e precipícios, a fuligem do carvão empapando-lhe o corpo.
Daqueles onde havia sempre espiões, e freiras
disfarçadas, e resistentes a fintarem os nazis, e velhinhas de carrapito que de
repente apontavam uma pistola e fugiam com os sacos do tesouro federal.
Daqueles onde, a meio da viagem, surgia um morto que
ninguém conseguia explicar.
Daqueles onde um polícia (o mau) perseguia um ladrão
(o bom), saltando de carruagem em carruagem, e a gente a torcer na plateia para
que a carruagem seguinte se desprendesse do resto do comboio e o ladrão pudesse
regenerar-se no colo da rapariga loira, enquanto o polícia caía pela ravina no
exacto momento em que o comboio enchia os ares com o seu apito, abafando-lhe os
gritos.
Daqueles que nos faziam perceber que uma vida monótona
e rasteira se podia redimir por alguns momentos de um breve encontro num
pequeno restaurante de uma pequena gare de uma pequena cidade, entre amores
clandestinos e silêncios deslumbrados.
Dantes, os comboios eram assim. E as gares. E pequenos
restaurantes, de soalhos a cheirar a sabão
e cera, de mesas de ferro e madeira, e melancólicos criados que nos deixavam
nas mesas grandes chávenas de chocolate quente, que agarrávamos com ambas as
mãos para que o frio passasse depressa. Aí sonhávamos com os nossos heróis do
cinema, esperando que chegassem no próximo comboio, por entre nuvens de fumo,
muito, muito fumo, que graça poderia ter um comboio sem fumo?, heróis com os
olhos do Trevor Howard, por exemplo, e nós claro, de boina vermelha levemente
inclinada e o cesto das compras ao lado, que, obviamente, ele iria carregar
porque é um cavalheiro, e um cavalheiro leva sempre o saco das nossas compras,
e o sobretudo no braço, mas antes disso há o tempo da paixão, que começa e
acaba entre um comboio que chega e um comboio que parte, com muitos violinos em
música de fundo. E fumo. Nuvens e nuvens de fumo.
Um dia, sem que até hoje alguém tenha conseguido
explicar a razão, o velho Leão Tolstoi fugiu de casa, apanhou um comboio, saiu
dele quando já estava muito longe, e deixou-se morrer, sozinho, na pequena gare
de Astapovo. Sempre me pareceu a maneira mais digna de se morrer – sobretudo,
como era o caso, aos 80 anos, depois de já se terem apanhado e perdido todos os
comboios essenciais de uma vida.
Mas há muito que os comboios deixaram de ser o que eram.
Eléctricos, assépticos, pontuais, demoram três horas
de Lisboa ao Porto, têm fax e telemóvel, empregados solícitos que levam ao
lugar a bandeja do pequeno-almoço e do jantar com aquela comida plastificada
igual à que servem nos aviões. Têm homens de negócios apressados, cada um com o
seu computador portátil e a sua pasta de cabedal, aproveitando o tempo de
viagem para adiantar a reunião que vão ter mal o comboio chegue, para acabarem
o artigo de opinião par o general de referência, para pegarem no telemóvel a
pedir que esteja um carro à sua espera na estação, porque não podem perder um
minuto.
Rápidos, os comboios já só param nas estações
importantes. As pequenas gares desapareceram e, com elas, os pequenos
restaurantes de soalhos a cheirara sabão
e cera. Nas novas gares há apenas arremedos de snack-bares, com cadeiras de
plástico voltadas para o écran da televisão lá no alto, onde uma loiraça
venezuelana de sotaque carioca ameaça «ainda tens de sofrer muito, Abigaíl
Gusmán!»
As nuvens de fumo desapareceram também, levando com
elas as paixões, os breves encontros, os olhares cúmplices sobre as chávenas de
chocolate quente, as bóinas levemente inclinadas, os olhos do Trevor Howard, o
sobretudo no braço, o romantismo.
Dantes, os comboios eram o prolongamento dos nossos
sonhos. Hoje, são o prolongamento do nosso escritório. E as gares não passam de
sala de espera onde eficientes secretárias coordenam entradas e saídas.
Se fosse hoje, o velho Tolstoi teria decerto grande
dificuldade para encontrar um digno e solitário lugar de adeus.
Alice Vieira emBica Escaldada
Legenda:
fotografia Shorpy Archive
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