Alegria Breve
Vergílio
Ferreira
Prefácio da
tradução francesa: Robert Bréchon
Capa: Manuel
Dias
Editora Arcádia,
Lisboa, Julho de 1973
Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha
mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira.
Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez,
inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao
muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar
para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “Verei dali a janela do meu
quarto.” Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A
quantos estamos? É Inverno, Dezembro talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma
pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados
de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente.
Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o
silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem
os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o
suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? –
desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe.
Sem comentários:
Enviar um comentário