sexta-feira, 18 de novembro de 2016

OLHAR AS CAPAS


Alegria Breve

Vergílio Ferreira
Prefácio da tradução francesa: Robert Bréchon
Capa: Manuel Dias
Editora Arcádia, Lisboa, Julho de 1973

Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “Verei dali a janela do meu quarto.” Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe.

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