A Peste
Albert Camus
Tradução:
Ersílio Cardoso
Capa: Bernardo
Marques
Livros do
Brasil, Lisboa, s/d
- É isto – disse Tarrou. – Por que mostra o senhor próprio
tanta dedicação, visto que não acredita em Deus? A sua resposta ajudar-me-á,
talvez a responder.
Sem sair da sombra, o doutor disse que tinha já
respondido; que, se acreditasse num Deus todo poderoso, deixaria de curar os
homens, deixando-lhe a ele esse cuidado. Mas que ninguém no mundo, não, nem o
padre Paneloux, que julgava acreditar, acreditava num Deus desse género, visto
que ninguém se abandonava totalmente que nisso, ao menos, ele, Rieux, julgava
estar no caminho da verdade, lutando contra a criação tal como ela era.
- Ah! disse Tarrou – é essa, então, a ideia que tem da
sua profissão?
- Pouco mãos ou menos – disse o doutor, voltando para
a luz.
Tarrou assobiou baixinho e o doutor olhou para ele.
- Bem sei – tornou ele – você há-de dizer que, para
isso, é preciso ter orgulho. Mas eu não tenho senão o orgulho necessário,
acredite. Não sei o que me espera nem o que há-de vir depois disto tudo. Para
já, há doentes e é presido curá-los. Defendo-os como posso, aí está.
- Contra quem?
Rieux voltou-se para a janela. Adivinhava ao longe o
mar, por uma condensação mais escura do horizonte. Sentia apenas a sua fadiga e
lutava ao mesmo tempo contra um desejo de se entregar um pouco mais a este
homem um pouco singular, mas que sentia fraterno.
- Não sei, Tarrou, juro-lhe que não sei. Quando vim
para esta profissão, fi-lo abstractamente, de certo modo, porque tinha
necessidade, porque era uma situação como as outras, uma dos que os rapazes se
propõem. Talvez também porque era particularmente difícil para um filho de
operário como eu. E depois foi necessário ver morrer. Sabe que há pessoas que
se recusam a morrer? Já ouviu alguma vez uma mulher gritar: «Nunca!» no momento
de morrer? Eu já. E descobri então que não podia habituar-me. Era novo, nesse
tempo, e a minha repugnância julgava então dirigir-se à própria ordem do mundo.
Depois, tornei-me mais modesto. Simplesmente, não me habituei a ver morrer. Não
sei mais nada. Mas, no fim de contas…
Riex calou-se e voltou a sentar-se. Sentia a boca
seca.
- No fim de contas? – disse suavemente Tarrou.
- No fim de contas… - continuou o doutor, e voltou a
hesitar, olhando para Tarrou com atenção – é uma coisa que um homem como você
pode compreender, não é verdade? Visto que a ordem do mundo é regulada pela
morte, talvez valha mais para Deus que não acreditamos nele e erguer os olhos
para o céu onde ele se cala.
Sim – aprovou Tarrou – compreendo. Mas as suas
vitórias serão sempre provisórias, aí está.
Rieux pareceu entristecer.
- Sempre, bem sei. Não é uma razão para deixar de
lutar.
- Não. Não é uma razão. Mas imagino, então, o que deve
ser esta peste para si.
- É verdade – tornou Rieux. – Uma interminável
derrota.
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