terça-feira, 29 de novembro de 2016

UMA ARTE QUE DESAPARECE


«Boa piada, nosso comandante. Estou radiante com a sereia. Até era capaz de dormir com ela, se ela deixasse.»
«E você que diz, Valdez?, perguntou o Prudentão.
«Olhe, nosso comandante. O que nós no fundo lamentamos, como diz o meu chefe, é a perda dos postos de trabalho. Cada vez menos faroleiros. Uma arte que desaparece, não é verdade? O nosso comandante já fala de automatização. Se o que isso é. Um dia este farol, esta máquina espantosa, não terá sangue humano a aquecê-lo por dentro. Alguém, de muito longe, carregará em botões.»
«Não será tanto assim, Valdez. O homem nunca ficará a mais. Porque toda a maquinaria precisará de ser inspecionada. É verdade que alguém, à distância, saberá onde ocorreu uma falha, reparável apenas pela mão humana. E o homem virá como um médico a cas de um doente. Não há volta a dar.»
Mafómedes comentou:
«Será talvez a hora da máquina. Mas a hora da natureza nunca acabará. E a mão está casada em primeiras núpcias com a natureza. Veja essa Delcri. Uma papeleira. Uma celulose, a encher de lixo o rio Divor, a ria de Cheraco, a bulir com as árvores, os campos, as águas, os peixes, a dar cabo da vida dos pescadores e até desses viveiristas e mariscadores de que falou. O nosso comandante chamou-lhes sanguessugas, Mas, ao mesmo tempo, quer esta costa cheia de hotéis, gentes nas varandas a olhar de noite Os Doze Apóstolos iluminados como as lojas de Oxford Street ou da Rua Augusta.»
Armando Prudentão sabia que viera ali para se incomodar. É que ele não tinha que dar satisfações aos seus inferiores. E Mafómedes, como chefe do farol, não tinha equivalência que fosse acima de tenente da Marinha. Acicatava-o, porém, aquela febre democrática de falar aos inferiores como companheiros. Explicar-lhes o que não poderiam entender. E eles nunca entendiam os interesses mais elevados do País. Era necessário que alguns se sacrificassem. O progresso sempre implicara isso. Quem o ignorava? O coração daqueles homens ali era um estorvo. O coração sentimentalizava tudo. Não ia cair numa conversa infantil. Uma conversa de repetir os lugares mais comuns do mundo.


Alexandre Pinheiro Torres em Vai Alta a Noite

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