Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a
morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que
cultivava não só a poesia em moldes originais, mas também a crítica
inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as
letras em Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num
escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus
amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o
mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação
nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar,
surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à
noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele era também Álvaro de Campos,
e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis.
José Saramago em
O Ano da Morte de Ricardo Reis, pág. 35.
Fernando Pessoa já não é Fernando Pessoa, e não porque
esteja morto, a grave e decisiva questão é que não poderá acrescentar mais nada
ao que foi e ao que fez, ao que viveu e escreveu, se falou verdade no outro
dia, já nem sequer é capaz de ler, coitado. Terá de ser Ricardo Reis a ler-lhe
esta outra notícia publicada numa revista, com retrato em oval, A morte
levou-nos há dias Fernando Pessoa, o poeta ilustre que levou a sua curta vida
quase ignorado das multidões, dir-se-ia que, avaliando a riqueza das suas
obras, as ocultava avaramente, com receio que lhas roubassem, ao seu fulgurante
talento será feito um dia inteira justiça, à semelhança de outros grandes
génios que já lá vão, reticências, filhos da mãe, o pior que têm os jornais é
achar-se quem os faz autorizado a escrever sobre tudo, é atrever-se a pôr na
cabeça dos outros ideias que possam servir na cabeça de todos, como esta de
ocultar Fernando Pessoa as obras com medo de que lhas roubassem, como é
possível ousarem-se tais inépcias.
José Saramago em
O Ano da Morte de Ricardo Reis, pág. 91
Legenda:
ilustração encontrada em Sul 21
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