segunda-feira, 9 de maio de 2022

LOUISE


Faz pouco mais de um mês que faleceu Paul Siebel. Tinha 84 anos e levou-o a sequela de uma fibrose pulmonar.

Por cá não vi a notícia em lado nenhum, nem sequer nos suplementos ditos “culturais” dos principais jornais.

Nos Estados Unidos, seu país natal, deve ter sucedido o mesmo, embora eu esteja esperançado que alguma das chamadas “revistas da especialidade” lhe dedique um ou dois parágrafos de despedida e de agradecimento, porque ele merece.

Mas não é de estranhar tanto esquecimento…

A morte do Paul Siebel que fazia pão num restaurante de província, do Paul Siebel que construía barquinhos de madeira para vender aos turistas, ou do Paul Siebel modesto empregado camarário numa cidadezinha do Maryland não é notícia.

E Paul Siebel, o “folksinger” que, por breves momentos, atingiu a ribalta no início dos anos 70 do século passado, esse já tinha morrido há quase 50 anos.

Se Paul Siebel não tivesse nascido com o dom de compor e de cantar, não se poderia afirmar, em boa verdade, que a “Folk Music” teria ficado muito mais pobre.

Mas eu sim…

É que Paul Siebel foi o autor de “Louise”, uma das canções de que mais gosto e que, por ironia do destino, transportava comigo no carro e tinha acabado de ouvir várias vezes, na precisa altura em que, por mera coincidência, tomei conhecimento da sua morte.

Mas já lá iremos…

Como tantos outros desse tempo, Paul Siebel deu nas vistas quando, no final dos anos 60, atuava nos bares “folk” de Greenwich Village. Foi aí que chamou a atenção de alguém a quem poderemos acusar de tudo menos de não ter “dedo” para descobrir novos talentos na “Folk Music”: Jac Holzman, o todo-poderoso patrão da Elektra Records, talvez a editora mais importante e influente do seu tempo nesse género musical (entre tantos outros, lançou Tom Paxton, Judy Collins, Judy Henske, Phil Ochs, Tom Rush, Tim Buckley…)

A Elektra propôs a Siebel a gravação de um álbum, embora lhe tivesse proporcionado parcas condições para isso: apenas quatro sessões de gravação de 3 horas cada uma. Siebel reuniu alguns músicos amigos, à cabeça dos quais David Bromberg, e cumpriu as suas obrigações contratuais. O LP daí resultante, “Woodsmoke and Oranges”, foi lançado em 1970 e considerado um “marco histórico” pela influente revista “Rolling Stone”. Da noite para o dia, Siebel atingia o estrelato na “Folk Music”.

Mas Paul Siebel fugia da ribalta e não tinha muita paciência para se promover. Fugia dos jornalistas, fugia das ações publicitárias, recusava-se a fazer atuações ao vivo de enfiada, umas atrás das outras, e o resultado foi que o êxito da crítica não foi acompanhado por idêntico sucesso comercial. 

No ano seguinte, com melhores condições de produção, sairia “Jack-Knife Gypsy”, que não repetiria o êxito da critica do anterior e venderia ainda menos.

Foi o fim da curta carreira de Paul Siebel. Não sei se ele não terá previsto isso mesmo, porque também não sei por que raio lhe passou pela cabeça fazer-se fotografar num cemitério decadente e colocar a fotografia na contracapa desse seu segundo e último LP. 

A musa recusou-se a voltar a dar-lhe a mão.

Caiu em depressão e depois mergulhou nas drogas, no que era um fenómeno corrente naquela época.

Não voltou a gravar mais nenhum álbum de originais e a única gravação sua que se conhece é de 1978 e foi feita “ao vivo” num bar de Santa Mónica, com a participação de David Bromberg e de Gary White, dois dos amigos que o acompanharam na gravação do lendário primeiro disco. Isto se não contarmos com uma esporádica participação (uma única música) num dos três célebres álbuns de “Woodstock Mountains – Music From Mud Acres” gravados em meados dos anos 70 e que em Lisboa podiam ser encontrados na saudosa Dargil.

A partir daí Paul Siebel esfumou-se, largou de vez a música e fez o que lhe veio à mão para sobreviver, como é o caso dos trabalhos que acima mencionei.

Mas vamos lá então a “Louise”, que faz parte do seu primeiro disco. 

Já sabemos que na “Folk Music” existem canções dedicadas a tudo: aos pais, às mães, aos animais de estimação, a figuras célebres da Política e da História da América, sendo eles verdadeiros heróis ou até meros “outlaws” que a lenda transformou em heróis, a começar em Jesse James e a acabar em Pretty Boy Floyd.

Mas também existem belíssimas canções dedicadas aos “zés-ninguém”, aos que vivem na miséria, aos deserdados do grande “sonho americano”.


“Louise” é uma dessas canções e deixo-vos lá a “letra”, para que a possam perceber:

“Well they all said Louise was not half bad
It was written on the walls and window shades
And how she'd act the little girl
A deceiver, don't believe her that's her trade
Sometimes a bottle of perfume,
Flowers and maybe some lace
Men brought Louise ten cent trinkets
Their intentions were easily traced
Yes and everybody knew at times she cried
But women like Louise they get by

Well everybody thought it kind of sad
When they found Louise in her room
They'd always put her down below their kind
Still some cried when she died this afternoon
Louise rode home on the mail train
Somewhere to the south I heard it said
Too bad it ended so ugly,
Too bad she had to go this way
Ah but the wind is blowing cold tonight
So good night Louise, good nigh”

Afinal, quem é Louise…? 

Paul Siebel terá desfeito o mistério ao afirmar, uma vez, que se trataria de uma “truck-stop whore” que encontrou no Kentucky. Mas a letra é tão dúbia que poderia muito bem ser outra coisa… Por exemplo, uma empregadita de um snack-bar à beira da estrada, como as vimos tantas no cinema americano, que pusesse em cada encontro amoroso toda a sua fé e esperança de que seria essa a grande oportunidade de alcançar essa coisa que não se sabe muito bem o que é, mas a que chamam Felicidade, com letra grande e tudo…

E, afinal, de que morreu Louise…?

Tudo poderemos imaginar, mas também nada ficaremos a saber…

Ter-se-á suicidado…?

Terá sido morta por ocasião de um desses encontros amorosos…?

Terá sofrido um ataque cardíaco fulminante…? 

O narrador que nos conta toda a história nada nos esclarece e só nos lança a confusão.

Tanto nos diz que Louise morreu naquela tarde, como nos conta que ela já vai num caixão a caminho do Sul.

Tanto nos dá a entender ter conhecido Louise, como nos leva a perceber que tudo o que nos conta foi de ter ouvido alguém contar 

Pouco importa, porém…  É esse o fascínio da canção.

Tal como a nossa Amélia, que Joaquim Pessoa confessou ter sido uma muito jovem prostituta que uma vez encontrou lá para as bandas do Liceu Camões, imagino que também Louise teria os olhos doces, que os seus sonhos a traziam grávida de esperanças e que, também ela, não teve direito a viver.  

E se Paul Siebel, apesar de bom escritor de canções, não tem a veia poética de Joaquim Pessoa, tem uma escrita muito mais cinematográfica.

Sempre que oiço esta música (e já a ouvi centenas de vezes…) consigo ver tudo, como se estivesse ali mesmo ao lado a espreitar

Vejo uma garezinha de província perdida no meio de nenhures.

Vejo um caixão feito de meia dúzia de tábuas baratas a ser colocado no vagão das mercadorias.

Ouço o apitar do comboio, vejo-o partir e vejo-o desaparecer lá ao fundo, no fio do horizonte.  

E o vento da canção, esse sinto-lhe o frio no meu próprio corpo…  

Que mais se pode pedir a uma canção…?

Obrigado e “good night” Paul Siebel, “good night”…

Desculpem a maçada, mas foi a forma que encontrei para prestar a minha modesta homenagem a Paul Siebel e fiquem com duas versões de “Louise”: a original e uma outra de Ian Mathews com os “Plainsong”, de que gosto muito, embora a voz calorosa de Mathews tenha o dom de adoçar a mais trágica das histórias…


COLABORAÇÃO DE LUÍS MIGUEL MIRA

3 comentários:

Seve disse...

Mais um excelente post (todo) - uma maravilha!
Obrigado caríssimos Sammy e Luís Miguel Mira.

Seve disse...

Confesso que não conhecia Paul Siebel.

Anónimo disse...

Obrigado pelo incentivo, Seve!
Um abraço.
Luís Mira