segunda-feira, 24 de junho de 2024

TOUS LES GARÇONS, NÃO É BOB DYLAN?

“Não há amores felizes”, canta com uma estóica e tão bela resignação Françoise Hardy. Mas será que pode haver “desamores felizes”? Os amores de Françoise, cinco contadinhos pelos dedos de uma mão, jura ela, foram todos infelizes, estradas acidentadas a desaguar na solidão. Foi na nostalgia de um desamor que Françoise Hardy se consolou, até há poucos dias, até ao dia da sua morte.

Bob Dylan foi esse “desamor feliz”. Lembro que ninguém conhecia Françoise. Vivia, em Paris, não longe do Pigalle, na rua du Aumale, a mesma onde, por menos de um ano, no século XIX, vivera Richard Wagner. Deve ter ficado por ali um acorde da “Cavalgada das Valquírias” à espera, um século depois, de entrar pelo ouvido da pequena Françoise. Ela dormia no quarto com a irmã esquizofrénica, na sala do mirrado apartamento, a mãe, solteira, contabilista pobre e tão infeliz, que tirava prazer de fazer infeliz a filha, capaz de lhe dizer que tinha umas pernas tão magras que lhe ficariam em Guimarães com elas para facas, soubesse Françoise onde era Guimarães.

Interessa é que era Hardy uma menina e começou a cantar. Em 1962, na noite em que a televisão francesa se esgadanhava para analisar os resultados do referendo sobre a eleição por sufrágio universal do presidente da república, sei lá se foi De Gaulle que pediu, aparece num intervalo a menina Françoise e da boca dela ouviu-se uma coisinha moderníssima, a canção que ela escreveu e chamou “Tous les garçons et les filles”. Os ouvidos de França desabrocharam. Escusado será dizer que no dia seguinte, todos os “garçons” e todas as “filles” entoavam, dançavam e se derretiam em tristeza com a encantada jeremiada daquela canção. E derreteu-se a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, e eu em Angola, “la main dans la main”, também.

Do outro lado do Atlântico, soprada pelo vento, chegou às mãos do ainda principiante Bob Dylan, a fotografia de Hardy. Olhou para aqueles ossos a quererem furar as maçãs do rosto, para os seios pequenos, para a cintilante mini-saia e apaixonou-se. E eu, colonialíssimo, em Angola também.

Como eu, Dylan só vira uma fotografia. Como eu, escreveu cartas a essa fotografia, chorou e suspirou nesse tempo em que os tempos tanto mudavam.  Mas eu não canto nem tenho talentos. Bob Dylan, sim. Já Françoise filmava com Hollywood e veio Dylan cantar a Paris, onde também Amália cantou, sala mítica, ao Olympia.

Françoise veio vê-lo. E Dylan, a acústica uma boa merda, falhou. Ao intervalo, recusou voltar ao palco, a não ser que a desconhecida Françoise viesse ao camarim consolar o seu derrotado ego. Ela veio. E tiremos, com a ajuda de Einstein, esses 10 minutos íntimos da fita newtoniana do tempo. No final do espectáculo, Dylan levou Hardy, Johnny Hallyday e mais uma mão cheia de franceses para a soberba delícia que era então o hotel Georges V. De olhos fixados em Hardy, deixou-os a todos menos ela, e na sua suite de americano cantou “Just Like a Woman” e “I Want You” à raptada miúda da rua du Aumale, ali perto do Pigalle.

Se isto não é uma declaração de amor, o que é uma declaração de amor? E eis a minha inquietação:  um tipo do Chega, um tipo do Bloco de Esquerda poderão ainda compreender a gentileza, a doçura, a angústia amorosa que está por trás de tudo isto?

Nada aconteceu, confessa com ternura Françoise, a não ser terem ficado a olhar-se num puríssimo sol, lá, si. Nunca mais se viram, mas Dylan escreveu esta dedicatória num LP: “A Françoise na margem do Sena, sombra gigante de Notre Dame.”

Sim, já houve amor. E que, lá do céu, Françoise continue a ser o “soleil” que tanta falta nos faz.

Manuel S. Fonseca na sua Página Negra

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