quarta-feira, 12 de junho de 2024

NÃO HÁ NINGUÉM COMO FRANÇOISE


Este é o título que João Gobern deu a um texto, sobre Françoise Hardy, publicado no Diário de Notícias de 28 de Abril de 2018:

«Dar de caras com Personne d"Autre - 28.º disco, se forem levadas em conta as edições em França, de uma carreira que nasceu há bem mais de meio século para embalar namorados ("tous les garçons et les filles de mon âge se promènent dans la rue deux par deux") e que com o tempo passou a comover tantas gerações - vale uma primeira vitória.

Tudo indicava que L"Amour Fou, lançado em 2012 e sendo já o quinto manifesto público da cantora e autora nos anos 2000, estaria condenado a assumir o papel de último testemunho. Basta recordar o que dizia Françoise: "Creio ter chegado ao ponto em que a inspiração não me visita com a frequência indispensável. Teria de acontecer algo de verdadeiramente inesperado, quase insólito, que me levasse a regressar aos estúdios. E também que houvesse um forte sopro de energia, que me permitisse ultrapassar os problemas de saúde que me afligem nestes tempos mais chegados."

Hardy lutou durante dez anos contra um cancro no sistema linfático, cuja remissão "total" só foi anunciada - pelo filho, Thomas Dutronc, músico, produtor e exímio guitarrista - em fevereiro de 2016. Como se não bastasse, uma queda, brutal e caseira, deixou-a quase sem possibilidades de andar e obrigou-a um internamento prolongado, de quase meio ano, numa clínica especializada. Estamos, afinal, perante um daqueles casos em que a contradição se saúda, porque Hardy voltou em pleno às gravações, e em que o milagre pessoal tem ótimas consequências para o universo dos melómanos.

Françoise Hardy, agora com 74 anos, acabaria por gravar o seu primeiro disco em 1962, beneficiando então de uma ajuda involuntária da política: a 18 de outubro desse ano, a França vai às urnas para referendar a eleição, por sufrágio direto e universal, do presidente da República. Na emissão televisiva, um dos intervalos musicais para amenizar a espera por um veredicto é entregue a Françoise Hardy e a Tous Les Garçons et Les Filles. No dia seguinte, pode falar-se em dois grandes vencedores do serão: Charles De Gaulle e Françoise Hardy, cujo disco chegará - antes do fim do ano - a meio milhão de exemplares vendidos.

No ano seguinte, a brisa do êxito tornou-se vendaval: Françoise foi capa da revista Paris Match, representou o Mónaco no Festival da Eurovisão, foi chamada por Roger Vadim para o cinema (Castelo na Suécia valeu como estreia, sendo presença assídua até 1967) e tomou conta do Olympia parisiense, nas suas primeiras grandes apresentações em palco.

Daí em diante, a história é (re)conhecida. Depreende-se que Hardy teve tempo, talento e técnica para cantar tudo, incluindo Victor Hugo e Louis Aragon. Entre os seus próximos, francófonos, vai de Django Reinhardt a Charles Trenet, passando por Georges Brassens, Gilbert Bécaud, Serge Gainsbourg, Georges Moustaki, Jacques Dutronc (o amor da sua vida, de quem está separada, mas não divorciada, desde 1988), Michel Jonasz, Gabriel Yared, Catherine Lara, Etienne Roda-Gil, Michel Fugain, Daniel Gérard, Alain Souchon, Etienne Daho, Arthur H., Calogero, Jean-Louis Murat, Jacques Higelin, Julien Doré ou Benjamin Biolay.

Atenta ao que se passa noutros quadrantes, também gravou - na língua original ou em adaptações para francês - originais de Paul Anka, Burt Bacharach, Leiber & Stoller, Goffin & King, Buddy Holly, Everly Brothers, Tim Hardin, Phil Ochs, Buffy Sainte-Marie, Neil Young, Randy Newman, Ray Davies e Perry Blake, sem esquecer os brasileiros Jobim, Chico Buarque e Taiguara, o espanhol José María Caño e o italiano Adriano Celentano. Com tudo isto, é legítimo e rigoroso dizer que Françoise se canta sobretudo a si mesma.

Isso mesmo volta a provar-se em Personne d"Autre, disco de elegância extrema (desde o primeiro momento, em que uma guitarra atmosférica resume, de imediato, o ambiente do disco), de uma melancolia aconchegante, que Françoise Hardy define como "adequada" para uma mulher da sua idade. As palavras - que a cantora raramente cede a terceiros - falam-nos, com a propriedade de quem viveu mas sem a soberba de quem só tem certezas para mostrar, de cumplicidade, de perda, de sublimação, de envelhecimento, da mudança nas alegrias (por oposição aos êxtases), dos entusiasmos que não desaparecem com a maturidade.

Nas doze canções, a "velha senhora" continua a mostrar olho clínico, ao acolher uma canção da moderna La Grande Sophie e ao transformar um original do obscuro grupo finlandês Poets Of The Fall. Mas até esses "sinais exteriores" entroncam perfeitamente na linha condutora de um álbum em que a voz não perde frescura e capacidade de - sempre sem esforço - nos arrebatar.

Depois, há outra vez a sinceridade desta "primeira-dama", sem nada a perder: ela confessou que parte das canções (como o tema-título ou Train Spécial) corresponde à sua narrativa do que viveu com Jacques Dutronc. Capaz de continuar a inspirar muitas gerações de vozes femininas da francofonia, de Zaz a Pomme, de Olivia Ruiz a Jenifer, de Joyce Jonathan a Louane, Personne d"Autre vale como um arremedo de biografia (e Hardy conseguiu um enorme sucesso com as suas memórias, em Le Desespoir des Singes, livro de 2008) e como um testemunho que pode perdurar. Soa a despedida, é certo. Mas, com Françoise Hardy, nunca se sabe. E fossem todas assim...

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