Do livro de Urbano Tavares Rodrigues, livro de Urbano Tavares Rodrigues, que hoje se apresenta em Olhar as Capas, escolhemos uma citação da crónica «Dia da Arte e do Povo», que retrata a Festa do Povo que ocorreu em Belém no dia 10 de Junho de 1974 em que os artistas plásticos pintaram um longo painel que, misteriosamente, foi destruído num incêndio.
Nessa
festa aconteceu, talvez, o primeiro acto censório do governo provisório, dos
responsáveis televisivos de então. Sim, era impossível que, tão só de repente,
tivessem surgido tantos democratas, quando tanta gente, tanta gente, tanta
gente, não marcou presença na colagem de cartazes, na distribuição de
panfletos, não foi perseguida pela pelos carros de tinta azul da polícia e
pelos esbirros da PIDE.
Ainda
nos lembramos quando Cavaco Silva, na pele de primeiro ministro do reino, disse
frente às câmaras da televisão disse que aquele 10 de Junho era o Dia da Raça.
Neste
10 de Junho, Dia de Camões, recordamos os acontecimentos desse 10 de Junho de
1974:
« No dia 10 de Junho de 1974, um grupo de quarenta e oito artistas plásticos do Movimento Democráticos dos Artistas Plásticos pintou, no Mercado da Primavera em Belém, um enorme mural.
Entre
muitos outros pintores, participaram na pintura colectiva Júlio Pomar, João
Abel Manta, Nikias Skapinakis, Menez, Vespeira, Costa Pinheiro,
MargaridaTengarrinha Dias Coelho, Sá Nogueira, João Abel Manta, Palolo, Ângelo
de Sousa, Nuno San-Payo, Lima de Carvalho, João Vieira, Jorge Martins, Querubim
Lapa, Alice Jorge, Fernando Azevedo, Rogério Ribeiro, José Escada, Vítor Palla,
António Domingues, Jorge Vieira, Carlos Calvet.
Vergílio
Ferreira no seu Diário:
«Dois amigos pintores (o Baptista e o
Querubim) deixaram-me dar umas pinceladas. Lembrei-me de Napoleão, em
Austerlitz, aos soldados: tu podes dizer «eu estive lá». De modo que também lá estive.»
Este
mural viria a desaparecer, num incêndio, em 1981, e nunca se conseguiu apurar
as causas.
O
mural fazia parte de uma série de actividades de solidariedade para com o
Movimento das Forças Armadas.
Durante
o dia, o Mercado da Primavera registou, através da cultura e das artes, outros
eventos de saudação à Liberdade que o Movimento das Forças Armadas nos
trouxera.
O
grupo de teatro A Comuna concebeu
um espectáculo, vulgo cegada, em que figuras notórias da ditadura eram
caricaturadas.
O
espectáculo estava a ser transmitido, em directo, pela Televisão, mas a emissão
foi subitamente interrompida quando o actor, que fazia de Cardeal Cerejeira,
proferia estas palavras:
«Senhor Presidente da República. Senhor
Presidente do Conselho. Filhas, artistas e filhos meus muito queridos em vosso
Senhor Jesus Cristo. Pedem a o patriarca Cerejeira que diga algumas palavras
nesta festa de artistas. Que palavras pode dizer o patriarca de Lisboa senão
fazer cantar como um apóstolo anima mea gaudiae pinctome, canatatis, representatis,
pictos, pictos, picta.
Que palavras pode dizer o cardeal de Lisboa senão o fazer exultar de alegria a
arte. O grito do Natal ressoa em nós quando a arte se transforma em parte e se
parte para a Arte que é o particípio do Espírito Santo.
Esta é a festa dos artistas em que
pelo que fazeis dais glória aos nossos governantes que mais não fazem que
executar a vontade de Deus e a vontade do povo, salvo seja…»
Passados
poucos minutos, a locutora Alice Cruz, leu o seguinte comunicado:
O programa que transmitíamos em directo do Mercado da Primavera foi interrompido por ordens superiores, estranhas aos trabalhadores da televisão que manifestam o seu repúdio por tal medida, pelo que oportunamente tomarão a atitude conveniente.
A ordem de interrupção fora ordenado pelo Major Mariz Fernandes, representante da Junta de Salvação Nacional na RTP .
No
dia seguinte, Raul Rego, ministro da Comunicação Social, emprestou a sua
concordância com o acto censório, e acrescentou:
Temos que ter em consideração os
sentimentos de parte da população portuguesa.
Passados
dias, o Conselho Permanente do Episcopado divulga um comunicado afirmando a
sua mais viva indignação por esse
espectáculo que foi sentida pela generalidade da população católica de
Portugal.
Fontes:
Recortes
de acervo pessoal, Diário de Uma
Revolução, Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978, Portugal Depois de Abril de
Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores, Lisboa,
Maio de 1976, Portugal Hoje, edição
da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, A Funda, Artur
Portela Filho, Editora Arcádia, Lisboa.
Legenda:
a) Pormenor
do mural colectivo tirado de Entre as Brumas da Memória
b) Fotografia
da feitura do mural, tirada de O
Século de 12 de Junho de 1974
c) Fotografia da representação da cegada de A Comuna tirada do Expresso de 15 de Junho de 1974.
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