segunda-feira, 10 de junho de 2024

CONVERSANDO


 Do livro de Urbano Tavares Rodrigues, livro de Urbano Tavares Rodrigues, que hoje se apresenta em Olhar as Capas, escolhemos uma citação da crónica «Dia da Arte e do Povo», que retrata a Festa do Povo que ocorreu em Belém no dia 10 de Junho de 1974 em que os artistas plásticos pintaram um longo painel que, misteriosamente, foi destruído num incêndio.

Nessa festa aconteceu, talvez, o primeiro acto censório do governo provisório, dos responsáveis televisivos de então. Sim, era impossível que, tão só de repente, tivessem surgido tantos democratas, quando tanta gente, tanta gente, tanta gente, não marcou presença na colagem de cartazes, na distribuição de panfletos, não foi perseguida pela pelos carros de tinta azul da polícia e pelos esbirros da PIDE.

Ainda nos lembramos quando Cavaco Silva, na pele de primeiro ministro do reino, disse frente às câmaras da televisão disse que aquele 10 de Junho era o Dia da Raça.

Neste 10 de Junho, Dia de Camões, recordamos os acontecimentos desse 10 de Junho de 1974:


« No dia 10 de Junho de 1974, um grupo de quarenta e oito artistas plásticos do Movimento Democráticos dos Artistas Plásticos pintou, no Mercado da Primavera em Belém, um enorme mural.

Entre muitos outros pintores, participaram na pintura colectiva Júlio Pomar, João Abel Manta, Nikias Skapinakis, Menez, Vespeira, Costa Pinheiro, MargaridaTengarrinha Dias Coelho, Sá Nogueira, João Abel Manta, Palolo, Ângelo de Sousa, Nuno San-Payo, Lima de Carvalho, João Vieira, Jorge Martins, Querubim Lapa, Alice Jorge, Fernando Azevedo, Rogério Ribeiro, José Escada, Vítor Palla, António Domingues, Jorge Vieira, Carlos Calvet.

Vergílio Ferreira no seu Diário:

«Dois amigos pintores (o Baptista e o Querubim) deixaram-me dar umas pinceladas. Lembrei-me de Napoleão, em Austerlitz, aos soldados: tu podes dizer «eu estive lá». De modo que também lá estive.»

Este mural viria a desaparecer, num incêndio, em 1981, e nunca se conseguiu apurar as causas.

O mural fazia parte de uma série de actividades de solidariedade para com o Movimento das Forças Armadas.

Durante o dia, o Mercado da Primavera registou, através da cultura e das artes, outros eventos de saudação à Liberdade que o Movimento das Forças Armadas nos trouxera.

O grupo de teatro A Comuna concebeu um espectáculo, vulgo cegada, em que figuras  notórias da ditadura eram caricaturadas.

O espectáculo estava a ser transmitido, em directo, pela Televisão, mas a emissão foi subitamente interrompida quando o actor, que fazia de Cardeal Cerejeira, proferia estas palavras:

«Senhor Presidente da República. Senhor Presidente do Conselho. Filhas, artistas e filhos meus muito queridos em vosso Senhor Jesus Cristo. Pedem a o patriarca Cerejeira que diga algumas palavras nesta festa de artistas. Que palavras pode dizer o patriarca de Lisboa senão fazer cantar como um apóstolo anima mea gaudiae pinctome, canatatis, representatis, pictos, pictos, picta.
Que palavras pode dizer o cardeal de Lisboa senão o fazer exultar de alegria a arte. O grito do Natal ressoa em nós quando a arte se transforma em parte e se parte para a Arte que é o particípio do Espírito Santo.

Esta é a festa dos artistas em que pelo que fazeis dais glória aos nossos governantes que mais não fazem que executar a vontade de Deus e a vontade do povo, salvo seja…»

Passados poucos minutos, a locutora Alice Cruz, leu o seguinte comunicado:

O programa que transmitíamos em directo do Mercado da Primavera foi interrompido por ordens superiores, estranhas aos trabalhadores da televisão que manifestam o seu repúdio por tal medida, pelo que oportunamente tomarão a atitude conveniente.

A ordem de interrupção fora ordenado pelo Major Mariz Fernandes, representante da Junta de Salvação Nacional na RTP .

 No dia seguinte, Raul Rego, ministro da Comunicação Social, emprestou a sua concordância com o acto censório, e acrescentou:

Temos que ter em consideração os sentimentos de parte da população portuguesa.

Passados dias, o Conselho Permanente do Episcopado divulga um comunicado afirmando a sua mais viva indignação por esse espectáculo que foi sentida pela generalidade da população católica de Portugal.

Fontes:

Recortes de acervo pessoal, Diário de Uma Revolução, Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978, Portugal Depois de Abril de Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores, Lisboa, Maio de 1976, Portugal Hoje, edição da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, A Funda, Artur Portela Filho, Editora Arcádia, Lisboa.

Legenda:

a)      Pormenor do mural colectivo tirado de Entre as Brumas da Memória

b)      Fotografia da feitura do mural, tirada de O Século de 12 de Junho de 1974

c)      Fotografia da representação da cegada de A Comuna tirada do Expresso de 15 de Junho de                 1974.

Sem comentários: